terça-feira, 4 de setembro de 2012

Mensagem



Procurava na agenda o número do telefone da pizzaria, e dei de cara com o número do celular de um amigo, que falecera dois dias antes.
Tive a idéia de ligar para ele, mas só de pensar na possibilidade de ouvir sua voz, me deu calafrios.
Minha vontade foi contida pelo medo de despertar, com tal gesto, a ira da morte. E na hora me veio a verdade inquestionável – e a morte de meu amigo foi um exemplo disso – de que a morte quase sempre não manda aviso prévio. Ela nos pega desprevenidos.
Minha brincadeira sinistra recebeu o merecido troco. Ao ligar para o número do amigo que faleceu, o silêncio do outro lado da linha foi quebrado pela seguinte mensagem da morte: “Vou ficar mais um pouco na área de vocês, analisando, observando,... Quero saber se vocês merecem desfrutar da plenitude da vida, que só pode experimentar quem está vivo!”.

Suando na turbulência desses pensamentos malucos, lembrei da crônica Mensagem, da Heloisa Seixas, que reproduzo a seguir.

MENSAGEM

Ficou chocado quando recebeu o telefonema sobre a morte da amiga. Ele a conhecia havia muitos anos e nunca soubera que tivesse doença alguma. Era uma mulher relativamente jovem, bonita, que se cuidava. Muitas vezes caminhava com ele pela praia, sempre animada e contando casos engraçados. Tinham estado juntos poucos dias antes. Como é possível, perguntou ao amigo comum que lhe dava a notícia, ele também perplexo. Foi um mal súbito, respondeu o outro.
Mal súbito. A expressão ficou ressoando em seu ouvido. Era a junção de duas palavras fortes, incontornáveis em seu sentido, que resumiam com tirania aquela morte para ele absurda. Mal súbito. Não podia acreditar.
Passaram-se alguns minutos e ele ali, parado junto ao telefone, olhando para o aparelho como se esperasse ver brotar de seus fios a explicação que buscava. De repente, tomou um susto. Tão confuso ficou ao receber a notícia, que não havia perguntado nada sobre o horário e local do enterro. Folheou com dedos úmidos o caderno de telefones, procurando o número do conhecido que acabara de ligar. E, sem querer, abriu justamente na página que trazia o telefone da amiga morta. Estremeceu, olhando aquele nome, seguido de algarismos que já não faziam sentido. Seus olhos ficaram turvos.
Mas em seguida pensou que talvez fosse melhor ligar para a casa dela. Ela morava sozinha, é verdade, mas com toda a certeza haveria alguém da família atendendo ao telefone, justamente para informar sobre o enterro. Talvez, ligando para lá, ele soubesse mais alguma coisa, algum detalhe que o ajudasse a aceitar o que acontecera.
Ligou. O telefone tocou uma, duas, três vezes e, em seguida, após um clique, ele ouviu a última coisa que esperava ouvir – a voz da amiga.
Por um instante, ficou imóvel, apertando o bocal, os dedos muito brancos, enquanto a voz suave da mulher morta falava com ele. Claro que num segundo se recuperou.. Claro que percebeu logo ser apenas a voz dela gravada na secretária eletrônica – que continuara ligada.
Mas, passado o primeiro susto, redobrou a atenção. Começou não apenas a ouvir, mas também a escutar o que ela dizia. E constatou que não era uma mensagem comum, apressada, como as que são gravadas pela maioria das pessoas. A amiga deixara gravada na secretária eletrônica um recado lírico, como um poema, que, curiosamente, até então ele nunca ouvira. No fim, ela dizia que não estava, mas que logo voltaria – e eles se reencontrariam. E era como se houvesse, por trás de suas palavras, um sorriso. Como se falasse de verdade com ele, a ele se dirigisse. E era como se dissesse que estava feliz.
Ele próprio sorria também ao repor o fone no gancho, os olhos ainda úmidos. Estava pacificado.

Eloísa Seixas, do livro Contos mínimos, Editora BestSeller.


sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Mais um sonho


Tentar despertar sonhos noturnos para libertar o imaginário se parece com a libertação de um passarinho da gaiola. O bicho tem medo de se libertar porque é nosso prisioneiro, e não o queremos ver partir porque nos tornamos seu refém.

Pode ser obra do imaginário, ou qualquer coisa absurda, mas sou ingênuo a ponto de acreditar que há no meu inconsciente um Outro Eu, que me manipula, como se eu fosse um fantoche. Mas confio Nele, a ponto de acreditar que Ele pode dar as respostas para as perguntas que não consigo responder.
Às vezes imploro a esse “Eu mais profundo” para que me ajude a me libertar, a fazer uma escolha num universo cheio de possibilidades, que me tire a sensação de me sentir preso numa gaiola.
Dia desses fiz um pedido aos meus sonhos. Vocês podem rir mas, ultimamente, meus pedidos se resumem a obter uma visão mágica de números que me façam acertar no jogo do bicho.
Como a pressão para tomar uma decisão era intensa, pedi ao meu Daimon para que me trouxesse uma luz, me ajudasse a escolher, entre: mudar de vez daqui e ir morar no norte do país, para materializar um grande amor que conheci pela internet e também para ter uma profissão mais digna, ou permanecer próximo de meu guri e de meus atuais amigos.
Relaxei, meditei, pedi com tamanha intensidade, que naquela madrugada recebi uma resposta através de um sonho. 
Estávamos, eu e meu filho, caminhando por entre as árvores de um bosque, quando nisso uma enorme sucuri atacou o menino. Desesperado, ele gritou para mim:
- Papai, me ajude!
Agi igualzinho ao Ulisses, da Odisséia. Peleei com toda a valentia, porque me sentia entre a vida e a morte, e tinha uma grande missão a cumprir.
Derrotei a cobra e libertei o menino.

Acordei assustado, e durante todo o dia permaneci atordoado com aquela mensagem do sonho.
Mesmo atordoado, não vacilei naquele dia em jogar na “cobra”. Só jogo no primeiro dia porque, com o passar do tempo, a rotina me conduz ao esquecimento, e eu deixo tudo como está.
Acreditem, o número da cobra saiu dois dias depois. Deu na cabeça e no milhar!

Não tenho sorte no jogo. No amor, pelo que eu me conheço, com o passar do tempo e com a rotina, tudo permanece como naquela música, do Benito de Paula: “Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus...”

Hoje, em vez de pedir respostas ao meu Daimon, eu rezo para que ele me ajude a segurar meu amor distante, como a Penélope da Odisséia. Que ela continue a tecer e desfazer o manto dos seus sentimentos, afugentando os pretendentes que querem roubá-la de mim.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Múltiplo sorriso - Heloisa Seixas




Pendurou a última bola na árvore de Natal e deu alguns passos atrás. Estava bonita. Era um pinheiro 
artificial, mas parecia de verdade. Só bolas vermelhas. Nunca deixava de armar sua árvore, embora as 
amigas dissessem que era bobagem fazer isso quando se mora sozinha. Olhou com mais vagar. Na luz 
do fim da tarde, notou que sua imagem se espelhava nas bolas. Em todas elas, lá estava seu rosto, um 
pouco distorcido, é verdade – mas sorrindo. “Estão vendo?”, diria às amigas, se estivessem por perto. 
“Eu não estou só.”

Contos mais que mínimos. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Quando alguém morria - Hélio Ricciardi


Marieta dizia, com ar
profético,
quando alguém morria:
- O Senhor o chamou para
seu Reino da Glória.
E eu logo me punha a rezar e
a rezar
para que ele não me
chamasse ao Reino
e me deixasse sem Glória
alguma,
perdido por essas ruas,
seus luares
e seus bares.

Jornal Zero Hora de 21/06/2012.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O incêndio no shopping - curto-circuito dos argumentos


Agosto de 2012 anda estranho. Não apenas essa primavera temporona. Mas também outros eventos, inclusive o incêndio do shopping de Ijuí. Não apenas o incêndio, mas também o texto de Allana Willers, "Não basta apagar o fogo" (no portal www.ijui.com), e da avalanche de comentários que ele suscitou.

Ao ver a foto no jornal Zero Hora do dia 20/08/2012, na sessão “Foto do leitor”, onde um pássaro “pesca” um peixe, não pude deixar de fazer uma relação com o texto e alguns comentários – um deles em especial.

A natureza não nos surpreende com sua dinâmica (e suas cenas). Nada há de errado em uma ave caçar e devorar um peixe; lagartos comerem cobras; aranhas comerem insetos; nós comermos a carne da vaca e os vermes nos devorarem quando passarmos dessa para outra.

Isso faz parte de um processo (ciclo da vida?) que a biologia explica. Mas na vida social, podemos tratar o outro “feito bicho”?

Qual o limite, o sinal amarelo, que nos indica o que podemos dizer ou não publicamente, com relação aos argumentos dos outros, de cujas ideias não concordamos?

Diz um comentário ao texto, que cito aqui:  
"FELIZMENTE PARA TODOS, ELA ESTÁ NO "PRIMEIRO SEMESTRE" DE JORNALISMO, AINDA PODE REVER OS CONCEITOS E TROCAR DE CURSO. QUEM SABE ARTES PLÁSTICAS, OU PRENDAS DOMÉSTICAS, TRICÔ E CROCHÊ. ALGUMA COISA ENFIM, QUE NÃO TENHA A OPORTUNIDADE DE ESCREVER OU FALAR PARA O PÚBLICO".

Quem o escreve parece indicar algo do tipo: “Se eu pudesse, eu te jogava aos leões, ou te devoraria eu mesmo!”

Ora, isso mostra que pisoteamos o espaço da argumentação e partimos para a guerra, com o propósito de eliminar quem não pensa como a gente.

Esse fenômeno é comum no Brasil atual, em que a democracia é uma criança que está tentando aprender a engatinhar – o vemos quando percebemos que ainda não temos uma ETIQUETA de bons modos a respeito de como nos comportar e argumentar no espaço público (virtual ou não).

Muitas vezes não sabemos diferençar bom senso, gentileza, de grosseria, argumento razoável de falácia, etc.

Essa imaturidade (e ingenuidade) de nossa democracia transparece também nas redes sociais, por exemplo no facebook. Muitos citam frases, pensamentos de motivação e/ou auto-ajuda, “assinados” por grandes poetas, escritores ou pensadores. Eles nunca escreveram isso, mas nós, por não conhecermos sua obra, os fazemos circular publicamente, achando que estamos prestando um grande serviço à humanidade.

O fenômeno está ligado ao que eu venho experimentando atualmente, com o imenso espaço público de argumentação de que disponho na internet: blog, twitter, Orkut, facebook... Me preocupo, diante disso: o que falar (postar) para ser visto, comentado, lembrado?

Aqui vejo a necessidade de inventarmos uma etiqueta (ou regras) que nos indiquem quando o sinal está amarelo, nos alertando para que não o ultrapassemos. Invadir o sinal vermelho seria confundir a emoção e o desejo (individual) com argumentação (pública).

Luis Fernando Verissimo escreveu uma crônica (Microfone escondido) que chama a atenção para essa relação do público e do privado. Um casal, que morava num apartamento, teve um dia a idéia de colocar um aparelho de escuta dentro do elevador do prédio. Assim eles podiam ouvir as conversas dos casais seus amigos, que os visitavam, ouvindo-os na chegada e também depois que se despediam. Obviamente, as conversas no elevador, sobre esse casal, não eram as mais elogiosas...

Depois de algumas experiências na escuta de vários casais amigos seus, e da decepção decorrente da descoberta sobre o que comentavam deles, o casal decidiu desligar aquele aparelho bisbilhoteiro, porque, senão, todos os casais seus amigos se tornariam inimigos. 

 A linguagem é pública, cultural e social. Se não cuidarmos dela, se não prestamos atenção no que dizemos a respeito dos outros, corremos o risco de tornar o convívio social um inferno, jogando assim a democracia aos leões.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...