sexta-feira, 2 de março de 2012

A velha contrabandista - Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.


Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:


- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?


A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:


- É areia!


Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.


Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.


Diz que foi aí que o fiscal se chateou:


- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.


- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:


- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?


- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.


- Juro - respondeu o fiscal.


- É lambreta.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mãe em sonho - Paulo Mendes Campos

Diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, incessantes, ilimitadas, sobre os filhos, almas sempre verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o  seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arteriosclerose.
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-nos é uma das espertezas das mães. Mas a sutileza de minha mãe foi ainda mais fina. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arteriosclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, confesso, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nesses últimos tempos. E o que minha mãe pretendia dizer é claro como água de filtro: Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.
Mas foi do coração que eu morri.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

E o Oscar vai para...


Basta olhar com algum cuidado para perceber que estamos rodeados por alguns TIPOS de pessoas.
Um dos tipos é aquele que não resiste ao impulso de chamar a atenção dos outros, a todo momento. Enche nossa caixa de mensagens com e-mails de auto-ajuda, motivação... “Deus isso Deus aquilo...”. Seu recado vem com a observação de que é importante lê-lo, é algo sensacional e que vai mudar nossa vida.
Nesse tipo temos os bem-intencionados, os mal-intencionados, e (ambos) os ingênuos.
Há uma derivação do tipo acima. Se um bando adere a algum movimento reivindicatório, lá encontraremos nosso herói. Ele sempre é voluntário para qualquer moda que surgir. Basta um tsunami se formar através das redes sociais, e lá está ele discursando, dono da verdade. Ele se junta ao rebanho, e aumenta os decibéis de sua voz. Notamos isso, por exemplo, na insatisfação (emocional e não-racional) com o técnico do time de futebol, quando seu time é derrotado.
Um segundo TIPO, recomenda: “Passe a mensagem adiante, senão um grande mal vai se abater sobre você...” Esses reclamam por qualquer coisa, em qualquer área, e para isso acampam nas redes sociais virtuais. O monstrinho vai devorando boa parte do tempo desses bucéfalos, que ficam horas e horas hipnotizados por ele.
Um outro TIPO está sempre atento a tudo e a todos, sejam amigos, colegas de trabalho, vizinhos. Considera sua MISSÃO, nessa “grande” vida, se intrometer. Ele precisa colocar o dedo na água fervente das relações humanas. Se, por um lado, esse tipo tem muito de intrometido, por outro sua inteligência é atrofiada, pois não percebe que seu “toque genial” pode causar sofrimento nas pessoas envolvidas.
Há um tipo hiper-moderno, afeito a VIDEAR tudo o que vê pela frente. Sempre carrega uma câmera, seja do celular ou fotográfica. Para ele qualquer coisa que vê é um registro importante, e que “merece entrar” para a história.

Bem, esses são apenas alguns tipos que daremos uma estatueta.
É diante dessa visão plana, nebulosa, que temos ao encarar a realidade, que afirmo, com o filósofo Merleau-Ponty: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
Em vez de nos encaixarmos em algum tipo que, com sua ação, está atrofiando sua inteligência, vamos aprender a olhar a realidade de outros ângulos, de preferência mais criativos e menos nocivos.
Mas vamos enxergar com a originalidade de quem é livre, e não embuçalado pelos outros.
O mundo é cheio de detalhes que o olhar viciado não consegue captar. Vamos usar a inteligência (e não o LSD, por favor!) para abrir as portas de nossas percepções.

Farei aqui uma simples analogia entre nossos tipos e alguns animais: os bois, os leões e as águias.
Muitos bois são barrigudos, queixam-se a toda hora dos outros. Desconfiam tanto, tanto, que só têm tempo para satisfazer seus instintos. Muitos vezes ficam cegos, tristes e aflitos, e não encontram saída para os seus labirintos.
Muitos leões estufam o peito e gostam de mandar. Outros andam com os ombros caídos, são tímidos e se curvam, aos poucos, aos olhares dos outros. Porém, há leões que dobram de altura, quando vivem novas aventuras.
As águias possuem o centro de gravidade no meio da testa. Carregam a bondade no coração e seus olhos funcionam como espelho da mente.
Gostaria que deixássemos de ser (mansos) como os bois, tivéssemos a bravura (bem-intencionada) do leão, e o olhar afiado e inteligente da águia.

A história a abaixo, cito-a para dar ênfase àquilo que escrevi aqui.


Maria vai com as outras (Sylvia Orthof)


ERA UMA VEZ UMA OVELHA CHAMADA MARIA.
ONDE AS OUTRAS OVELHAS IAM, MARIA IA TAMBÉM.
AS OVELHAS IAM PRA BAIXO.
MARIA IA PRA BAIXO.
AS OVELHAS IAM PRA CIMA.
MARIA IA PRA CIMA.
MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


UM DIA, TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O POLO SUL.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR FRIO!
AS OVELHAS PEGARAM UMA GRIPE!!!
MARIA PEGOU GRIPE TAMBÉM.
ATCHIM!


MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


DEPOIS TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O DESERTO.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR QUENTE!
AS OVELHAS TIVERAM INSOLAÇÃO.
MARIA TEVE INSOLAÇÃO TAMBÉM. UF! PUF!


UM DIA, TODAS AS OVELHAS RESOLVERAM COMER SALADA DE JILÓ.
MARIA DETESTAVA JILÓ.
MAS, COMO TODAS AS OVELHAS COMIAM JILÓ, MARIA COMIA TAMBÉM.
QUE HORROR!


MARIA PENSOU, SUSPIROU, MAS CONTINUOU FAZENDO O QUE AS OUTRAS FAZIAM.


ATÉ QUE AS OVELHAS RESOLVERAM PULAR DO ALTO DO CORCOVADO
PRA DENTRO DA LAGOA.
TODAS AS OVELHAS PULARAM.
PULAVA UMA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E CHORAVA: MÉ!
PULAVA OUTRA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E GRITAVA: MÉ!


E ASSIM QUARENTA E DUAS OVELHAS PULARAM,
QUEBRARAM O PÉ, CHORANDO: MÉ ! MÉ! MÉ!


CHEGOU A VEZ DE MARIA PULAR.
ELA DEU UMA REQUEBRADA,
ENTROU NUM RESTAURANTE E COMEU UMA FEIJOADA.


AGORA, MÉ , MARIA VAI PARA ONDE CAMINHA O SEU PÉ!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Órion - Carlos Drummond de Andrade


A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Anota aí, vai


Ah, se pudéssemos recuperar aquelas frases de efeito, ditas de um jeito espontâneo, na mesa do bar!
Na hora pareciam interessantes, e alguém falou, recomendando: "Anota aí, vai".
Mas nunca carregamos papel e caneta, e deve ser porque não acreditamos que temos capacidade de escrever algo interessante.
Se acaso alguma frase ou fragmento surgir, recorremos ao garçon, indiferente, desconfiado ou cúmplice, para trazer um pedaço de papel e caneta.
Como num jogo de cartas, as vontades são embaralhadas na mesa do bar. Cada um torce para que a sorte lhe traga melhores frases de efeito ou - que não é diferente - fartos olhares.
É pela quantidade de chopes que arriscamos apostas que, de dia, devido a claridade e a censura, nunca o faríamos.
E o círculo se completa na manhã seguinte, quando somos despertados pelo sentimento de culpa: "O que que eu fui fazer?!"
Espiamos nossos pecados.
Espiamos também as ditas frases "geniais" anotadas no pedaço de papel, e descobrimos, ridículos, que elas são bem fraquinhas...
Mas crescemos assim.
Lembremos da sutileza com que espiávamos pela fechadura segredos agitados pela curiosidade. Sabíamos o momento certo para entrar em cena.
Depois, éramos corroídos pela culpa, até o dia da confissão ao padre.
Crescemos e deixamos de ser atores. Ficamos medrosos do ridículo.
Medrosos até o segundo chope. Depois, dada a ordem ou súplica do "Anote aí, vai", temos certeza de que nossa idéia genial vai revolucionar o mundo.
Finalmente nosso cérebro processou algo interessante!

Vamos ao bar para espiar e anotar, quando possível.
Não o tamanho do lanche e refris pet que os casais, pais e filhos devoram.
Espiamos o frescor dos seus segredos, as trocas de olhares, caras alegres ou semblantes franzidos, lábios trêmulos ou bem desenhados.
Espiamos de cá e de lá, na ânsia de que algum olhar se choque com nosso olhar, e que se tivermos essa carta na manga (curinga?) aplacaremos, um pouco, nossa solidão.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...