quinta-feira, 1 de março de 2012

Mãe em sonho - Paulo Mendes Campos

Diz um provérbio judaico que Deus, não podendo estar em todos os lugares, fez as mães. Como as mães são terríveis, como urdem dia e noite a trama do amor e da vigilância, como se inclinam, incessantes, ilimitadas, sobre os filhos, almas sempre verdes, sempre ameaçadas. Um homem põe barba e quer pensar com o  seu nariz; uma menina põe busto e quer pensar com o seu coração. De que ardis se socorrem as mães para endireitar corações e narizes sem machucá-los.
Sonhei com ela. Almoçávamos em sua casa, e eu tinha acabado de comer uma salada imensa, muito temperada, quando minha mãe me falou com uma voz superlativamente doce: Meu filho, você anda comendo muito, cuidado com a arteriosclerose.
Acordei em pânico e cheio de lúcida gratidão. Aparecer em sonho para aconselhar-nos é uma das espertezas das mães. Mas a sutileza de minha mãe foi ainda mais fina. Não ando comendo muito e nenhum sinal aparente me faz candidato à arteriosclerose. Minha mãe queria me dizer outra coisa. Usou do estratagema de que eu estava comendo muito para não magoar o filho. Na realidade, confesso, andava eu era exagerando na bebida, festas inelutáveis, exposições, lançamentos, um amigo que chegou, um amigo que se foi, coisas. Sim, tinha exagerado nesses últimos tempos. E o que minha mãe pretendia dizer é claro como água de filtro: Meu filho, você anda bebendo muito, cuidado com a cirrose.
Mas foi do coração que eu morri.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

E o Oscar vai para...


Basta olhar com algum cuidado para perceber que estamos rodeados por alguns TIPOS de pessoas.
Um dos tipos é aquele que não resiste ao impulso de chamar a atenção dos outros, a todo momento. Enche nossa caixa de mensagens com e-mails de auto-ajuda, motivação... “Deus isso Deus aquilo...”. Seu recado vem com a observação de que é importante lê-lo, é algo sensacional e que vai mudar nossa vida.
Nesse tipo temos os bem-intencionados, os mal-intencionados, e (ambos) os ingênuos.
Há uma derivação do tipo acima. Se um bando adere a algum movimento reivindicatório, lá encontraremos nosso herói. Ele sempre é voluntário para qualquer moda que surgir. Basta um tsunami se formar através das redes sociais, e lá está ele discursando, dono da verdade. Ele se junta ao rebanho, e aumenta os decibéis de sua voz. Notamos isso, por exemplo, na insatisfação (emocional e não-racional) com o técnico do time de futebol, quando seu time é derrotado.
Um segundo TIPO, recomenda: “Passe a mensagem adiante, senão um grande mal vai se abater sobre você...” Esses reclamam por qualquer coisa, em qualquer área, e para isso acampam nas redes sociais virtuais. O monstrinho vai devorando boa parte do tempo desses bucéfalos, que ficam horas e horas hipnotizados por ele.
Um outro TIPO está sempre atento a tudo e a todos, sejam amigos, colegas de trabalho, vizinhos. Considera sua MISSÃO, nessa “grande” vida, se intrometer. Ele precisa colocar o dedo na água fervente das relações humanas. Se, por um lado, esse tipo tem muito de intrometido, por outro sua inteligência é atrofiada, pois não percebe que seu “toque genial” pode causar sofrimento nas pessoas envolvidas.
Há um tipo hiper-moderno, afeito a VIDEAR tudo o que vê pela frente. Sempre carrega uma câmera, seja do celular ou fotográfica. Para ele qualquer coisa que vê é um registro importante, e que “merece entrar” para a história.

Bem, esses são apenas alguns tipos que daremos uma estatueta.
É diante dessa visão plana, nebulosa, que temos ao encarar a realidade, que afirmo, com o filósofo Merleau-Ponty: “A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
Em vez de nos encaixarmos em algum tipo que, com sua ação, está atrofiando sua inteligência, vamos aprender a olhar a realidade de outros ângulos, de preferência mais criativos e menos nocivos.
Mas vamos enxergar com a originalidade de quem é livre, e não embuçalado pelos outros.
O mundo é cheio de detalhes que o olhar viciado não consegue captar. Vamos usar a inteligência (e não o LSD, por favor!) para abrir as portas de nossas percepções.

Farei aqui uma simples analogia entre nossos tipos e alguns animais: os bois, os leões e as águias.
Muitos bois são barrigudos, queixam-se a toda hora dos outros. Desconfiam tanto, tanto, que só têm tempo para satisfazer seus instintos. Muitos vezes ficam cegos, tristes e aflitos, e não encontram saída para os seus labirintos.
Muitos leões estufam o peito e gostam de mandar. Outros andam com os ombros caídos, são tímidos e se curvam, aos poucos, aos olhares dos outros. Porém, há leões que dobram de altura, quando vivem novas aventuras.
As águias possuem o centro de gravidade no meio da testa. Carregam a bondade no coração e seus olhos funcionam como espelho da mente.
Gostaria que deixássemos de ser (mansos) como os bois, tivéssemos a bravura (bem-intencionada) do leão, e o olhar afiado e inteligente da águia.

A história a abaixo, cito-a para dar ênfase àquilo que escrevi aqui.


Maria vai com as outras (Sylvia Orthof)


ERA UMA VEZ UMA OVELHA CHAMADA MARIA.
ONDE AS OUTRAS OVELHAS IAM, MARIA IA TAMBÉM.
AS OVELHAS IAM PRA BAIXO.
MARIA IA PRA BAIXO.
AS OVELHAS IAM PRA CIMA.
MARIA IA PRA CIMA.
MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


UM DIA, TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O POLO SUL.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR FRIO!
AS OVELHAS PEGARAM UMA GRIPE!!!
MARIA PEGOU GRIPE TAMBÉM.
ATCHIM!


MARIA IA SEMPRE COM AS OUTRAS.


DEPOIS TODAS AS OVELHAS FORAM PARA O DESERTO.
MARIA FOI TAMBÉM.
AI, QUE LUGAR QUENTE!
AS OVELHAS TIVERAM INSOLAÇÃO.
MARIA TEVE INSOLAÇÃO TAMBÉM. UF! PUF!


UM DIA, TODAS AS OVELHAS RESOLVERAM COMER SALADA DE JILÓ.
MARIA DETESTAVA JILÓ.
MAS, COMO TODAS AS OVELHAS COMIAM JILÓ, MARIA COMIA TAMBÉM.
QUE HORROR!


MARIA PENSOU, SUSPIROU, MAS CONTINUOU FAZENDO O QUE AS OUTRAS FAZIAM.


ATÉ QUE AS OVELHAS RESOLVERAM PULAR DO ALTO DO CORCOVADO
PRA DENTRO DA LAGOA.
TODAS AS OVELHAS PULARAM.
PULAVA UMA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E CHORAVA: MÉ!
PULAVA OUTRA OVELHA,
NÃO CAIA NA LAGOA, CAIA NA PEDRA,
QUEBRAVA O PÉ E GRITAVA: MÉ!


E ASSIM QUARENTA E DUAS OVELHAS PULARAM,
QUEBRARAM O PÉ, CHORANDO: MÉ ! MÉ! MÉ!


CHEGOU A VEZ DE MARIA PULAR.
ELA DEU UMA REQUEBRADA,
ENTROU NUM RESTAURANTE E COMEU UMA FEIJOADA.


AGORA, MÉ , MARIA VAI PARA ONDE CAMINHA O SEU PÉ!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Órion - Carlos Drummond de Andrade


A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luzia na janela do sobradão.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Anota aí, vai


Ah, se pudéssemos recuperar aquelas frases de efeito, ditas de um jeito espontâneo, na mesa do bar!
Na hora pareciam interessantes, e alguém falou, recomendando: "Anota aí, vai".
Mas nunca carregamos papel e caneta, e deve ser porque não acreditamos que temos capacidade de escrever algo interessante.
Se acaso alguma frase ou fragmento surgir, recorremos ao garçon, indiferente, desconfiado ou cúmplice, para trazer um pedaço de papel e caneta.
Como num jogo de cartas, as vontades são embaralhadas na mesa do bar. Cada um torce para que a sorte lhe traga melhores frases de efeito ou - que não é diferente - fartos olhares.
É pela quantidade de chopes que arriscamos apostas que, de dia, devido a claridade e a censura, nunca o faríamos.
E o círculo se completa na manhã seguinte, quando somos despertados pelo sentimento de culpa: "O que que eu fui fazer?!"
Espiamos nossos pecados.
Espiamos também as ditas frases "geniais" anotadas no pedaço de papel, e descobrimos, ridículos, que elas são bem fraquinhas...
Mas crescemos assim.
Lembremos da sutileza com que espiávamos pela fechadura segredos agitados pela curiosidade. Sabíamos o momento certo para entrar em cena.
Depois, éramos corroídos pela culpa, até o dia da confissão ao padre.
Crescemos e deixamos de ser atores. Ficamos medrosos do ridículo.
Medrosos até o segundo chope. Depois, dada a ordem ou súplica do "Anote aí, vai", temos certeza de que nossa idéia genial vai revolucionar o mundo.
Finalmente nosso cérebro processou algo interessante!

Vamos ao bar para espiar e anotar, quando possível.
Não o tamanho do lanche e refris pet que os casais, pais e filhos devoram.
Espiamos o frescor dos seus segredos, as trocas de olhares, caras alegres ou semblantes franzidos, lábios trêmulos ou bem desenhados.
Espiamos de cá e de lá, na ânsia de que algum olhar se choque com nosso olhar, e que se tivermos essa carta na manga (curinga?) aplacaremos, um pouco, nossa solidão.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

No dia em que o gato falou - Millôr Fernandes


Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês. Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios. Este gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano. Mas falar não falava. E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas, repetindo sílabas e palavras para ele na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas nada!

A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo, muito mais do que devia. Um papagaio, que falava pelas tripas do Judas. Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapatão. E quanto mais meditava mais tempo gastava com o gato no colo, tentando métodos, repetindo silabas, redobrando cuidados para ver se conseguia que seu miado virasse fala.
Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a ideia genial. Quando a ideia iluminou seu cérebro, veio acompanhada da critica, auto-crítica: “Mas, como não me ocorreu isso antes?” O papagaio viu no brilho do olhar da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado e cozinhado em menos de uma hora. Pois o raciocínio da mulher era lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era evidente que o gato começaria a falar? Era? Não era? Veria. O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo – horror! – pela primeira vez. Mas o gato se recusou. Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, ele olhou para a dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar (num tom meio currupaco, meio miau-miau-miau, mas perfeitamente compreensível):
– Madame, foge pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair!
A mulher, tremendo de emoção e alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez.
– Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
– Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! – e pulou para a rua.
Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.
O gato, escondido melancolicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
– Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que falei, não me prestou a mínima atenção.


MORAL: O mal do artista é não acreditar na própria criação.


O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...