quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Uma incrível batalha entre Dom Quixote de la Mancha e uma traça faminta



Dom Quixote ressonava dentro de um livro esquecido,
quando acordou assustado por um estranho ruído!
Uma traça devorava uma página amarela,
seu destino era “traçado” e triturado por ela!


Nessa página impassível, que a traça roia aos poucos,
Cervantes lhe condenava à condição de ser louco...
E a velha biblioteca, tomada pela aflição,
pode ver a realidade digerindo a ficção!


O velho herói deu um salto, procurando a sua lança;
chamou, do fundo da história, o seu fiel Sancho Pança...
Pensou em sair à busca, nos livros da mesma estante,
por outro guerreiro nobre, qualquer cavaleiro andante...


Arrepiou o bigode, bradou cruéis impropérios
culpando os tempos modernos e seus nocivos mistérios;
que toda a Literatura se encontra sob ameaça
e toda essa gritaria deu mais apetite à traça!


Nunca assim, tinha lutado contra revés tão daninho,
só contra ovelha e pastores e mais de trinta moinhos...
Pensou, temente, se a traça lhe roesse toda a idéia
ia esquecer das promessas que fez para Dulcinéia...


Tentou fugir a cavalo, mas não chegou ir distante,
a traça tinha roído um naco do Rocinante!
Quando já vinha cansado, judiado em cima do arreio,
ela vinha degustando dois capítulos e meio!


Nem mesmo um inseticida, um “flite” ou um semelhante
o nosso herói encontrava para o derradeiro instante...
Sozinho se debatia... Que, pra aumentar a desgraça,
a Dulcinéia e o Sancho vinham na “pança” da traça!


Quem diria Dom Quixote, enfim, de fato lutando
pra defender sua terra, que a traça vinha ocupando!
“Alto lá, traça bandida! Pois este papel tem dono!”
parafraseou Tiaraju, sem poupar garbo ou entono!


A traça olhou para o velho, com sua fome tamanha,
e atropelou o coitado que despediu-se da Espanha...
Comeu arreio e cavalo, traçou bigode e armadura
e, do Quixote espantado, não sobrou nem a loucura!


E a traça? Nunca mais vi... E nem quero saber da bruxa...
Só espero que se conserve longe da estante gaúcha!
Foi vista por Dom Casmurro, entrando no livro a trote,
ia palitando os dentes com a lança de Dom Quixote!

Rodrigo Bauer e Gujo Teixeira

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O pequinês da cunhada - Kledir Ramil

Zé Luís é um carioca bonachão, desses que se divertem com tudo e têm uma paciência de Jó. Dona Néia, a patroa, resolveu trazer sua irmã Marilia para morar com eles, pois andava deprimida desde a morte do marido. Veio a cunhada, as malas, as tralhas e Pingo, um pequinês com cara de poucos amigos.
Apesar de apenas um palmo de altura, Pingo foi tomando conta da casa. Rosnava o dia inteiro e enchia o saco de todo mundo, principalmente do Zé Luís. Não podia enxergar o pobre homem e atacava os calcanhares. Zé Luís começou a usar botas. Pleno verão, 40 graus no Rio de Janeiro e o coitado com bota de cano alto. Parecia um caubói do subúrbio. Como se não bastassem os ataques, o animal fazia cocô pela casa toda. E a cunhada não gostava de limpar sujeira de cachorro. Sobrava pra quem?
Depois de Pingo matar o angorá da vizinha e arrebentar a boca do filho da faxineira, Zé Luís decidiu dar um basta. Inventou uma história de um casal de amigos, sem filhos, que tinham um sitio em Xerém e andavam loucos por um bichinho de estimação. Propôs levar o pequinês. Seria tratado como um rei, teria ar puro, espaço para correr. Desconsolada, Marilia concordou com a proposta, convicta de que Pingo estaria melhor junto à natureza.
Zé Luís pegou a fera pela coleira, colocou na camionete, se mandou e sumiu com o bicho.
O tempo foi passando, Marilia sempre querendo saber notícias e Zé Luís desconversava, sem estender muito o papo. Mas todo dia ela insistia e perguntava pelo seu cãozinho. Aquela ladainha também começou a encher a paciência. Um dia, pra tentar encerrar o assunto...
- Cunhada querida! Falei com meus amigos do sítio. O Pinguinho está ótimo. Está se alimentando bem, crescendo que é uma maravilha. Já está deste tamanho - mostrando com a mão uma altura de 1 metro e meio do chão.
- Mas Zé - emendou Marília, desconfiada - pequinês não cresce tanto...
- Olha Marília... – continuou ele, abraçando a cunhada e oferecendo um gole de cerveja – com esse negócio de engenharia genética... os japoneses inventaram agora uma super ração que é impressionante. Diz que o Pingo é outro cachorro, tá até namorando uma Rotweiller...
E Marilia quieta, só observando de canto de olho. Resolveu tomar uma cerveja, vai fazer o quê?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Nestas ruazinhas de Ijuí

Nestas ruazinhas de Ijuí
há muitos cães e cavalos.
"Minha casa, minha vida"
                         acampou
os gramados de futebol.
A gurizada recuou,
foi brincar no computador.


Poucos sobem nas árvores
andam de bicicleta
têm carrinho de rolimã...


A rua é exclusividade
de carros e motos
os piás estão atrás das grades
distantes do  murmúrio do riacho
distantes do mundo real.


A gurizada se exilou,
foi para o mundo virtual.


Minha cidade tem dinossauros
disfarçados
de quebra-molas
tem pilotos turbinados
disfarçados
de motoristas.


Eles correm
se locupletam
para fugir da vida.


Tem internet na praça
tem skatistas e boêmios
tem faixas de segurança
tem pedestres distraidos.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Era silencioso o amor - Bartolomeu Campos Queirós




Era silencioso o amor. Podia-se adivinhá-lo no cuidado da mãe enxaguando as roupas na água de anil. Era silencioso, mas via-se o amor entre os seus dedos cortando a couve, desfolhando repolhos, cristalizando figos, bordando flores de canela sobre o arroz-doce nas tigelas.
Lia-se o amor no corpo forte do pai, no seu prazer pelo trabalho, em sua mansidão para com os longos domingos. Era silencioso, mas escutava-se o amor murmurando - noite adentro - no quarto do casal. A casa, sem forro, deixava vazar esse murmúrio com aroma de fumo e canela, que invadia lençóis e dúvidas, para depois filtrar-se por entre telhas.
Experimentava-se o amor quando, assentados no calor da cozinha - pai e mãe - falavam de distâncias, dos avós, das origens, dos namoros, dos casamentos.
E, quando o sono chegava, para cada menino em cada tempo, era o amor que carregava cada filho nos braços para a cama, ajeitando o cobertor por sob o queixo.

do livro Indez, editora Miguilim,1989.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SOLDADOS


Os brinquedos esquecidos
na penumbra do quarto
dizem que têm a minha cara.


Não sei se foi brincadeira
mas bastou ouvir aquilo
pra eu olhar mil espelhos.


Quando estou no quarto
olho nos olhos deles...
Quero de volta a saudade
dos meus brinquedos.


De tanto olhar e imaginar
eles envelheceram.
Então aconselharam
depositá-los num asilo.


Emburrado, guardei-os com cuidado:
eram caixas de soldados desarmados.


Libertei velhos aliados! –gritei.
- De hoje em diante quero amigos,
não quero subordinados!


Mamãe ficou chocada
quando percebeu
legiões de soldados
marcharem triunfantes
em cima da estante!

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...