domingo, 4 de dezembro de 2011

GURI ASSUSTADO





Falávamos do velório
da velhinha
das vidas que se foram
e de outras que virão...

Quando fui atravessar a rua
o defunto por mim passou...

Para meu espanto
movimentos quânticos
puseram o féretro
no meu caminho

- minha consciência quase deu nó!

Acordei com o sino da capela
e as batidas do relógio de parede
do vizinho.

Os sentinelas do tempo
tiveram comportamento estranho
pra uma tarde de domingo!

Como guri assustado
agora eu morro de medo
de ficar sozinho!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O açúcar - Ferreira Gullar



O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e
tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes,
onde não há hospital,
nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã
em Ipanema.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Idiotas espancam morador de rua



O jornal Zero Hora de terça-feira, 29/11/2011, traz como uma de suas manchetes o seguinte: "Morador de rua agredido por jovens". Ao ler a notícia, me deparo com a seguinte argumentação desses jovens idiotas, para defenderem seu ato: "O homem não era ninguém, era apenas um morador de rua".
Vendo o outro, seu semelhante, como "ninguém", nossos jovens sentiram-se autorizados a agir com violência. Em seu depoimento, o pai de um desses heróis, afirmou que seu filho manifestou comportamento agressivo depois que começou a usar drogas. Os pais desse jovem deviam se perguntar sobre a gênese da coisa: por quais motivos seu filho caiu no mundo da droga?
O que falta a esses jovens? Parece que a sedução das bebidas e drogas se apossa de um vazio existencial vivido por eles. Há uma energia reprimida que se manifesta, infelizmente, através da violência. 
Uma explicação é de que essa garotada anda perdida, sem uma âncora de valores que sirva de ponto de apoio e equilíbrio. Daí surge o grupo, os estimulantes, e facilmente são persuadidos pelos argumentos da violência, que muitos deles dizem "não dar nada".
Para contrapor a essa explosão de violência por parte desses jovens, vou trazer para vocês um texto do escritor e poeta Affonso Romano Sant'Anna, "O incêndio de cada um".
O autor apresenta uma série de cenas, para mostrar pequenos acontecimentos (quase imperceptíveis) em que os personagens "desabrocham", detonam em si o que mais profundamente eles são. Viram outra pessoa.
Sant'Anna chama de "momento de sedução típico de cada um". Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio e natural.
Obviamente, esses momentos são impulsionados pelo amor. "Estou falando de uma coisa simples e única, quando o que cada um tem de mais seu relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a monotonia e o indivíduo se transcendentaliza".
É isto o que importa. O incêndio de cada um. Cada um deve ter um jeito de deflagrar sua luz aprisionada.
No caso dos jovens agressores, em vez do incêndio criativo impulsionado pelo amor, eles foram impulsionados pela brutalidade, pelo instinto de morte, que é o que de mais assustador possui o ser humano.
 

O INCÊNDIO DE CADA UM

Affonso Romano de Sant'Anna

A cena foi simples. Ia eu passando de carro pela Lagoa quando vi na calçada uma moça esperando o ônibus com seu jeans e bolsa a tiracolo. Nada demais numa moça esperando o ônibus. Mas eis que passou um caminhão de som tocando uma lambada. Aí aconteceu. Aconteceu uma coisa quase imperceptível, mas aconteceu: os quadris da moça começaram a se mexer num ritmo aliciante. Já não era a mesma criatura antes estática, solitária, esperando o ônibus na calçada. Ela havia se coberto de graça, algo nela se incendiara.
A fotógrafa veio fazer umas fotos. Estava com o pescoço envolto num pano, pois tinha torcicolo. E eu ali posando meio frio, fingindo naturalidade, e ela cautelosa com seu pescoço meio duro, tirando uma foto aqui, outra aIi, quase burocraticamente. De repente, ela descobriu um ângulo, e pronto: se incendiou profissionalmente, jogou-se no chão, clic daqui, clic dali, vira para cá, vira para lá, este ângulo, aquele, enfim, desabrochou, o pescoço já não doía. Ela havia detonado em si o que mais profundamente ela era.
Estamos numa festa. Aquele bate-papo no meio daquelas comidinhas e bebidinhas. Mas de repente alguém insiste para que outro toque violão. Aparentemente a contragosto ele pega o instrumento. E começa a dedilhar. Pronto, virou outra pessoa. Manifestou-se. Elevou-se acima dos demais, está além da banalidade de cada um. Achou o seu lugar em si mesmo. Assim também ocorre quando vemos no palco o cantor dar seus agudos invejáveis, o bailarino dar seus saltos ou o atleta no campo disparar seus músculos e fazer aquilo que só ele pode fazer melhor que todos nós. Isto é o que ocorre quando o instrumentista pega o sax e sexualiza todo o ambiente com seu som cavernoso e erótico. Isto é o que se dá até quando um conferencista ou um professor entreabre o seu discurso e põe-se como uma sereia a seduzir a platéia, como um maestro seduz todo o teatro. 
Há um momento de sedução típico de cada um. Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio e natural. E isto encanta. 
Claro, esses são exemplos até esperados. Mas há outros modos de o corpo de uma pessoa embandeirar-se como se tivesse achado o seu jeito único e melhor de ser. Digo, o corpo e a alma. 
Mas nem todos podemos ser tão espetaculares. Nem por isso o pequeno acontecimento é menos comovente. 
De que estou falando? De algo simples e igualmente comovente. Por exemplo: o jardineiro que ao ser jardineiro é jardineiro como só o jardineiro sabe e pode ser. 
E que ao falar das flores, ao exibi-las cercadas de palavras, percebe-se, ele está em transe. Igualmente o especialista em vinhos, que ao explicar os diversos sabores nos quatro cantos da boca faz seus olhos verterem prazer e embalam a quem o ouve com sua dionisíaca sabedoria. 
Feita com amor, até uma coleção de selos se magnifica. Se torna mais imponente que uma pirâmide se a pirâmide for descrita ou feita por quem não a ama. É assim que pode entrar pela sala alguém e servir um cafezinho, mas sendo aquele o cafezinho onde ela põe sua alma, ela se torna de uma luminosidade invejável. 
Cada um tem um momento, um gesto, um ato em que se individualiza e brilha. Nisto nos parecemos com os animais e peixes ou quem sabe com as nuvens. Animais e peixes têm isto: têm trejeitos raros e sedutores, cada um segundo sua espécie. Até as nuvens, como eu dizia, tem seu momento de glória. 
Uma vez vi um pintor em plena ação, pintando. Meu Deus! O homem era um incêndio só, uma alucinação. Sua face vibrava, havia uma febre nos seus gestos. Era uma erupção cromática, um assomo de formas e volumes. 
Então é disso que estou falando. Dessa coisa simples e única, quando o que cada um tem de mais seu relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a monotonia e o indivíduo se transcendentaliza. 
Pode parecer absurdo, mas já vi uma secretária transcendentalizar-se ao disparar seus dedos no teclado da máquina de escrever. Era uma virtuose como só o melhor violinista ou pianista sabem ser. E as pessoas achavam isto mais sensacional que se ela estivesse engolindo fogo na esquina. 
lsto é o que importa: o incêndio de cada um. Cada qual deve ter um jeito de deflagrar sua luz aprisionada. As flores fazem isto sem esforço. Igualmente os pássaros. Todos têm seu momento de revelação. É aguardar, que o outro alguma hora vai se manifestar.

domingo, 27 de novembro de 2011

Uns pelos outros - Ruth Rocha





Nesta história, a autora aborda o espaço do individualismo, o espaço do EU e, por outro lado, o espaço coletivo, o nós, o nosso.
O texto foi publicado no ano de 1986, que está historicamente situado após a abertura política do país. Na história “Uns pelos outros”, Ruth Rocha narra a história no futuro do livro, ou seja, em 1996, quando São Paulo contava 20 milhões de habitantes.
Nesta história as pessoas buscam ajudar umas às outras e a si próprias, resolvendo seus problemas individualmente, sem pensar em uma solução coletiva. A solidariedade é colocada num plano individualista: eu te ajudo, desde que você me ajude também. Um fazia PELO outro, o amigo POR outro amigo, a tia PELO sobrinho. Pensavam em FACILITAR o cotidiano, mas ninguém pensava em como RESOLVER COLETIVAMENTE um dos maiores problemas vivido neste momento: o da locomoção.
O individualismo, sutilmente, entra no cotidiano das pessoas, como forma de melhorar a vida de cada um, mas não de todos. As relações são pautadas em trocas de favores, não em troca de experiências. E o espaço público torna-se lócus de resolução de coisas particulares. (Citado de Thaís Otani Cipolini, Ruth Rocha: tramas de histórias e histórias entrecruzadas).


UNS PELOS OUTROS


Isso aconteceu há muitos anos, quando as cidades começaram a ficar tão cheias de gente que ir de um lugar para o outro se tornou um problema.
Eu morava em São Paulo, que nesta época já tinha 20 milhões de habitantes, e mesmo o metrô com suas 27 linhas principais não dava conta de transportar todo mundo.
Nas avenidas auxiliares, aquelas enormes avenidas que o prefeito eleito em 1996 construiu, e que têm 18 faixas de rodagem, o trânsito às vezes ficava parado 5, 6 horas, de maneira que as pessoas faziam de tudo dentro dos carros: liam, faziam a barba, estudavam, jogavam batalha naval, faziam tricô, jogavam xadrez, faziam de tudo!
Nas ruas secundárias as pessoas desciam dos carros, dançavam, faziam cooper, ginástica, balé, lutavam caratê...
A gente tinha que ficar o dia inteiro abrindo a porta, que toda hora tinha alguém pedindo pra usar o banheiro, beber água, ou pedindo um comprimido pra dor de cabeça.
Então, não sei bem quem foi que encontrou uma maneira de facilitar algumas tarefas, ou se foram várias pessoas ao mesmo tempo, que tiveram a mesma idéia.
O que eu sei é que todo mundo começou a trocar os encargos, uns com os outros, que era pra facilitar as coisas.
No começo facilitava, mesmo!
A gente telefonava pro amigo e pedia:
- Será que dá pra você pagar a mensalidade da minha escola que é aí pertinho?
E o outro respondia:
- Está bem, eu pago, mas será que dava pra você ir ao aniversário do Alaor, que é aí juntinho da sua casa?
Até que funcionava!
Às vezes vinham uns pedidos meio chatos:
- Você pode visitar minha sogra, por favor, que ela está doente, precisa de companhia? Ela mora mesmo no seu prédio. Como era um pedido meio chato lá vinha outro pedido chato de volta:
- Tudo bem, deste que você vá ao enterro do Dr. Genivaldo que é aí na sua esquina.
Mas tinha gente que pedia pra gente umas coisas absurdas:
- Será que dava pra você ir ao dentista por mim, enquanto eu vou comer uma pizza aqui na esquina pra você?
Aí não dava, é ou não é?
Ou então:
- Olha, vai fazer exame na escola pra mim que eu vou ao cinema pra você.
No começo, quando as pessoas pediam essas coisas, a gente recusava, naturalmente.
Mas com o tempo foi ficando tão difícil a gente se movimentar que as pessoas foram concordando em fazer a tarefa dos outros.
Tinha gente que substituía os amigos no trabalho, tinha gente que namorava a namorada dos amigos, diz que teve um que até fez operação de apendicite no lugar de um primo...
Mas aí a coisa começou a encrencar.
Porque tinha gente que era reprovada pelo outro, o outro ficava danado!
Tinha gente que namorava o namorado do outro e não devolvia. Tinha gente que pegava catapora, quando estava fazendo a tarefa dos outros e pedia indenização porque dizia que isso não estava na combinação.
E a coisa começou a ficar preta no dia que as pessoas começaram a se aproveitar da confusão.
Teve gente que tirou dinheiro do banco e não devolveu nunca mais, e teve até um espertinho que assumiu o comendo do 28° exército no lugar do General Durão e era pra ficar só um ou dois dias e ele não queria sair mais.
Mas o cúmulo, mesmo, foi no dia em que um tal de Generalino Caradura chegou cedo no palácio do Governo, e foi dizendo que o Presidente tinha telefonado pra ele, e tinha pedido que ele ficasse na presidência por uns tempos, que ele estava muito gripado, e que Brasília era muito longe, que o trânsito estava impossível e coisa e tal...
E depois que ele entrou no palácio, quem disse que ele saía?
Mas nunca mais!
Ele inventava que agora não podia, porque estava resolvendo umas coisas importantes, que agora não podia, porque ia receber uma visita de fora, que agora não podia por isso, por aquilo, por aquiloutro.
Esse cara ficou no palácio durante anos, e só saiu quando soube que tinha um cara na casa dele morando com a mulher dele, gastando o dinheiro dele e, o pior, usando o carro dele, que era feito sob encomenda nas oficinas especializadas de Cochabamba.
Essas coisas hoje em dia já são raras...
E agora vocês me desculpem. Tenho muito o que fazer.
Tenho que jogar uma partida de futebol para o meu sobrinho, enquanto ele experimenta meu vestido na costureira...

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Invenção

Quando ela está por perto
me pergunto, espantado:
será que as cores que eu vejo
não são do contrário?

Quem sabe o branco, o preto,
o azul,
o vermelho, o verde, o amarelo, 
na sala de parto da criação
foram trocados...

A musa não me leva a sério.
Ela diz que minhas paqueras
são invenções e brincadeiras
de um menino apaixonado.

Sim. Ela diz que sou
invenção inventada...
Diz que minha sanidade
fraudou o controle
de qualidade!

Mundo louco
do avesso
o que ouço
o que vejo...
Acho que fui
- por um gênio
desvairado -
hipnotizado!

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...