sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Os diferentes estilos - Paulo Mendes Campos


Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possiveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.


Estilo interjetivo
Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!




Estilo colorido
Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.




Estilo antimunicipalista (ou estilo Rigoniano)
Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas freqüentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por baixo do pano, a ignominosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele foco de epidemias. Até quando?




Estilo reacionário (ou estilo Edsonlimesco)
Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram nesta manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já sabe não bastasse para enfeiar aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.




Estilo então
Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providencias necessárias. Aí então eu resolvi te contar isso.




Estilo áulico
À sobremesa, alguém falou ao Presidente que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à familia enlutada. Como lhe informassem que a vitima ainda não fora identificada, S. Ex., com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas apreciadas blagues.




Estilo schmidtiano
Coisa terrivel é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos eram azuis, olhos para a festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte, este rio um pouco profundo caluniado de morte.




Estilo Complexo de Édipo
Onde estará a mãezinha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?




Estilo preciosista
No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua da Estrela-d´Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.




Estilo Nelson Rodrigues
Usava gravata cor de bolinhas azuis e morreu!




Estilo sem jeito
Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de Rui e o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimentos são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever, mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah, se eu soubesse escrever.




Estilo fofoca
Imagina você, Tutsi, que onte eu fui ao Sacha´s, legalíssimo, e dormi de tarde. Com o tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como a Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que tenho horror a gente morta!




Estilo lúdico ou infantil
Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vitima por baixo nao trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.




Estilo concretista
Dead dead man man mexe mexe mexe Mensch Mensch MENSCHEIT




Estilo didático
Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; c) teologico. Policial:o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teologico: o homem em Deus. Policia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores vêem.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Doidos

Doidos e apaixonados, passamos o dia um na cabeça do outro. Vivemos assim, um na soleira do outro. Para alcançarmos as horas, um no calcanhar do outro. E sonhamos bocados, um par perfeito pro outro. E olhamos vitrines, um presente pro outro...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Janela sobre o mundo II



Na parede, ao lado dos carrinhos do supermercado, está escrito:
é proibido brincar!

Na parede de um boteco de Ijuí, pode-se ler:
é proibido cantar!

Nem tudo está perdido:
ainda tem gente que canta,
ainda tem gente que brinca!

sábado, 29 de outubro de 2011

Janela sobre o mundo


A parteira tem a cara de um bebê chorão.
Há um teclado nos dedos do escritor.
Brilham algemas nos olhos do policial.
Há cifrões nos olhos daquele avaro.
Saltam pratos da boca do esganado.
O caçador tem no olhar o medo de sua caça.
O torturado rouba o sono do torturador.
O cão passeia com a elegância do seu dono.
Os amantes têm um só e mesmo relógio.
Papudo rouba a palavra de todo mundo.
Papudo fala com barulho e agora é carroça vazia.

O poeta entra no espelho e se despede.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Lustres e parafusos - Celso Gutfreind


Em meio às tristezas (salvo o canto do sabiá em meu quintal) dos últimos dias, encontrei um verdadeiro oásis quando li o texto abaixo, do Celso Gutfreind,  e vi o filme O segredo dos teus olhos.

 


LUSTRES E PARAFUSOS


“A minha empatia não suporta desumanidade nas políticas públicas.”


Salvador Célia



Noite dessas, sonhei com o Scliar. O clima era obscuro, mas dava para ver claramente. Ele vestia camisa azul, terno, gravata. Pedia ajuda no conserto de um lustre. Apertamos dois parafusos, e acendeu-se a luz.


Passei a manhã sem vontade de interpretar o sonho. Sentia-me feliz de vivê-lo, e pronto! Foram alguns instantes com o Scliar, a implicar-me com o seu pedido, e isto valia mais do que qualquer explicação. Estava em Fortaleza e fui dar uma volta. Na Beira-Mar, havia um monte de prédios luxuosos e muita gente dormindo na rua. Então me lembrei do poema O Bicho, do Manuel Bandeira e da prosa do Emile Zola.


Também do quadro Guernica, do Picasso, e pensei que estes caras reacenderam o mundo onde andava mais apagado. Daí a imaginá-los apertando parafusos para ativar um lustre, foi um passo. E davam-se muitos, perto do mar. Voltei a pensar no sonho como forma de resgatar a aventura humana.


Mas a presença do Scliar era viva e também parecia maior. Embalado pelo Bandeira e o Zola, repassei algumas cenas em que vi a arte acudir a vida. Numa delas, trabalhava no abrigo de crianças abandonadas pela dificuldade de mulheres serem mães, e homens, pais.


Tínhamos contado a história dos três porquinhos e agora propúnhamos um teatro. Meus colegas e eu acreditávamos que, se uma criança ouve histórias e aprende a encená-las, ela adquiriu a capacidade de lidar com a vida e com a morte. Havíamos providenciado um punhado de palha, outro de madeira e uns tijolos. Estava tudo ao alcance de nossos protagonistas. Os três meninos seguiram o roteiro da primeira cena e se despediram da menina-mãe.


Disseram que iam embora, porque desejavam conhecer o mundão, palavra deles. Já se preparavam para fazer de conta que construíam as casas quando a menina, de repente, recriou a sua personagem e proibiu os filhos de saírem. Era agora uma mulher enorme com o olhar atento para acolher demandas, colocar limites e desempenhar o papel principal de mãe que ama. Permaneceram todos juntos, longe do texto original e perto de quem mais queriam. Tinham ido ao reino da imaginação, de onde costuma voltar-se fortalecido para a realidade.


Arte em vida, parafuso apertado, lustre aceso. A possibilidade de reinventar a própria casa, consertar o mundinho real até que ele seja maior ou, pelo menos, conforme precisamos. Era o que pensava, mas o reflexo do sol no vidro dos prédios alcançou os mendigos bocejando. Então, parei de explicar e voltei a sonhar com o Scliar.


Zero Hora, quinta-feira, 27 de outubro de 2011.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...