quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Doidos

Doidos e apaixonados, passamos o dia um na cabeça do outro. Vivemos assim, um na soleira do outro. Para alcançarmos as horas, um no calcanhar do outro. E sonhamos bocados, um par perfeito pro outro. E olhamos vitrines, um presente pro outro...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Janela sobre o mundo II



Na parede, ao lado dos carrinhos do supermercado, está escrito:
é proibido brincar!

Na parede de um boteco de Ijuí, pode-se ler:
é proibido cantar!

Nem tudo está perdido:
ainda tem gente que canta,
ainda tem gente que brinca!

sábado, 29 de outubro de 2011

Janela sobre o mundo


A parteira tem a cara de um bebê chorão.
Há um teclado nos dedos do escritor.
Brilham algemas nos olhos do policial.
Há cifrões nos olhos daquele avaro.
Saltam pratos da boca do esganado.
O caçador tem no olhar o medo de sua caça.
O torturado rouba o sono do torturador.
O cão passeia com a elegância do seu dono.
Os amantes têm um só e mesmo relógio.
Papudo rouba a palavra de todo mundo.
Papudo fala com barulho e agora é carroça vazia.

O poeta entra no espelho e se despede.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Lustres e parafusos - Celso Gutfreind


Em meio às tristezas (salvo o canto do sabiá em meu quintal) dos últimos dias, encontrei um verdadeiro oásis quando li o texto abaixo, do Celso Gutfreind,  e vi o filme O segredo dos teus olhos.

 


LUSTRES E PARAFUSOS


“A minha empatia não suporta desumanidade nas políticas públicas.”


Salvador Célia



Noite dessas, sonhei com o Scliar. O clima era obscuro, mas dava para ver claramente. Ele vestia camisa azul, terno, gravata. Pedia ajuda no conserto de um lustre. Apertamos dois parafusos, e acendeu-se a luz.


Passei a manhã sem vontade de interpretar o sonho. Sentia-me feliz de vivê-lo, e pronto! Foram alguns instantes com o Scliar, a implicar-me com o seu pedido, e isto valia mais do que qualquer explicação. Estava em Fortaleza e fui dar uma volta. Na Beira-Mar, havia um monte de prédios luxuosos e muita gente dormindo na rua. Então me lembrei do poema O Bicho, do Manuel Bandeira e da prosa do Emile Zola.


Também do quadro Guernica, do Picasso, e pensei que estes caras reacenderam o mundo onde andava mais apagado. Daí a imaginá-los apertando parafusos para ativar um lustre, foi um passo. E davam-se muitos, perto do mar. Voltei a pensar no sonho como forma de resgatar a aventura humana.


Mas a presença do Scliar era viva e também parecia maior. Embalado pelo Bandeira e o Zola, repassei algumas cenas em que vi a arte acudir a vida. Numa delas, trabalhava no abrigo de crianças abandonadas pela dificuldade de mulheres serem mães, e homens, pais.


Tínhamos contado a história dos três porquinhos e agora propúnhamos um teatro. Meus colegas e eu acreditávamos que, se uma criança ouve histórias e aprende a encená-las, ela adquiriu a capacidade de lidar com a vida e com a morte. Havíamos providenciado um punhado de palha, outro de madeira e uns tijolos. Estava tudo ao alcance de nossos protagonistas. Os três meninos seguiram o roteiro da primeira cena e se despediram da menina-mãe.


Disseram que iam embora, porque desejavam conhecer o mundão, palavra deles. Já se preparavam para fazer de conta que construíam as casas quando a menina, de repente, recriou a sua personagem e proibiu os filhos de saírem. Era agora uma mulher enorme com o olhar atento para acolher demandas, colocar limites e desempenhar o papel principal de mãe que ama. Permaneceram todos juntos, longe do texto original e perto de quem mais queriam. Tinham ido ao reino da imaginação, de onde costuma voltar-se fortalecido para a realidade.


Arte em vida, parafuso apertado, lustre aceso. A possibilidade de reinventar a própria casa, consertar o mundinho real até que ele seja maior ou, pelo menos, conforme precisamos. Era o que pensava, mas o reflexo do sol no vidro dos prédios alcançou os mendigos bocejando. Então, parei de explicar e voltei a sonhar com o Scliar.


Zero Hora, quinta-feira, 27 de outubro de 2011.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bolhas de sabão...




Amanhã assombrarás a minha casa para falar de si.
Serei todo ouvidos, outra vez.
Na caderneta vou anotar as queixas, lamúrios e, se puder, tentarei desafogar os teus segredos.

Tens muito a dizer, até espantar o silêncio.
Um muro gagueja tua fala, vou derrubá-lo.

Marcas profundas nos apavoram, dispersarei
os fantasmas com voz suave e calma.

Assumirei a missão. Ser teu anjo da guarda.
Abrirei todas as trancas que estrangulam
teu desejo que se cala.

Hoje eu cansei.

A vida anda rasa, desfilam idiotas,
doidos por tolices.
Cansei da fertilidade normal,
bestial, previsível.

Cansei da criação corriqueira, cloacal...
Sim: tenho saudade do tédio poético,
                                                 musical,
da solidão que busca no algodão das nuvens
                          e nas bolhas de sabão
o amor irmão, que tem tesão
pelo re-criar!

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...