sábado, 29 de outubro de 2011

Janela sobre o mundo


A parteira tem a cara de um bebê chorão.
Há um teclado nos dedos do escritor.
Brilham algemas nos olhos do policial.
Há cifrões nos olhos daquele avaro.
Saltam pratos da boca do esganado.
O caçador tem no olhar o medo de sua caça.
O torturado rouba o sono do torturador.
O cão passeia com a elegância do seu dono.
Os amantes têm um só e mesmo relógio.
Papudo rouba a palavra de todo mundo.
Papudo fala com barulho e agora é carroça vazia.

O poeta entra no espelho e se despede.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Lustres e parafusos - Celso Gutfreind


Em meio às tristezas (salvo o canto do sabiá em meu quintal) dos últimos dias, encontrei um verdadeiro oásis quando li o texto abaixo, do Celso Gutfreind,  e vi o filme O segredo dos teus olhos.

 


LUSTRES E PARAFUSOS


“A minha empatia não suporta desumanidade nas políticas públicas.”


Salvador Célia



Noite dessas, sonhei com o Scliar. O clima era obscuro, mas dava para ver claramente. Ele vestia camisa azul, terno, gravata. Pedia ajuda no conserto de um lustre. Apertamos dois parafusos, e acendeu-se a luz.


Passei a manhã sem vontade de interpretar o sonho. Sentia-me feliz de vivê-lo, e pronto! Foram alguns instantes com o Scliar, a implicar-me com o seu pedido, e isto valia mais do que qualquer explicação. Estava em Fortaleza e fui dar uma volta. Na Beira-Mar, havia um monte de prédios luxuosos e muita gente dormindo na rua. Então me lembrei do poema O Bicho, do Manuel Bandeira e da prosa do Emile Zola.


Também do quadro Guernica, do Picasso, e pensei que estes caras reacenderam o mundo onde andava mais apagado. Daí a imaginá-los apertando parafusos para ativar um lustre, foi um passo. E davam-se muitos, perto do mar. Voltei a pensar no sonho como forma de resgatar a aventura humana.


Mas a presença do Scliar era viva e também parecia maior. Embalado pelo Bandeira e o Zola, repassei algumas cenas em que vi a arte acudir a vida. Numa delas, trabalhava no abrigo de crianças abandonadas pela dificuldade de mulheres serem mães, e homens, pais.


Tínhamos contado a história dos três porquinhos e agora propúnhamos um teatro. Meus colegas e eu acreditávamos que, se uma criança ouve histórias e aprende a encená-las, ela adquiriu a capacidade de lidar com a vida e com a morte. Havíamos providenciado um punhado de palha, outro de madeira e uns tijolos. Estava tudo ao alcance de nossos protagonistas. Os três meninos seguiram o roteiro da primeira cena e se despediram da menina-mãe.


Disseram que iam embora, porque desejavam conhecer o mundão, palavra deles. Já se preparavam para fazer de conta que construíam as casas quando a menina, de repente, recriou a sua personagem e proibiu os filhos de saírem. Era agora uma mulher enorme com o olhar atento para acolher demandas, colocar limites e desempenhar o papel principal de mãe que ama. Permaneceram todos juntos, longe do texto original e perto de quem mais queriam. Tinham ido ao reino da imaginação, de onde costuma voltar-se fortalecido para a realidade.


Arte em vida, parafuso apertado, lustre aceso. A possibilidade de reinventar a própria casa, consertar o mundinho real até que ele seja maior ou, pelo menos, conforme precisamos. Era o que pensava, mas o reflexo do sol no vidro dos prédios alcançou os mendigos bocejando. Então, parei de explicar e voltei a sonhar com o Scliar.


Zero Hora, quinta-feira, 27 de outubro de 2011.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bolhas de sabão...




Amanhã assombrarás a minha casa para falar de si.
Serei todo ouvidos, outra vez.
Na caderneta vou anotar as queixas, lamúrios e, se puder, tentarei desafogar os teus segredos.

Tens muito a dizer, até espantar o silêncio.
Um muro gagueja tua fala, vou derrubá-lo.

Marcas profundas nos apavoram, dispersarei
os fantasmas com voz suave e calma.

Assumirei a missão. Ser teu anjo da guarda.
Abrirei todas as trancas que estrangulam
teu desejo que se cala.

Hoje eu cansei.

A vida anda rasa, desfilam idiotas,
doidos por tolices.
Cansei da fertilidade normal,
bestial, previsível.

Cansei da criação corriqueira, cloacal...
Sim: tenho saudade do tédio poético,
                                                 musical,
da solidão que busca no algodão das nuvens
                          e nas bolhas de sabão
o amor irmão, que tem tesão
pelo re-criar!

domingo, 23 de outubro de 2011

Em código - Fernando Sabino


Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:
- Recebi de Belo Horizonte um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens, convém tomar nota: o senhor tem um lápis aí?
- Tenho. Pode começar.
- Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
- Precisa de quê?
- De uma nora.
- Que história é essa?
- Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?
- Continue.
- Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.
- Isso é alguma brincadeira.
- Não é não, estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto: sou amarelo, mas não opilado. Tomou nota?
- Mas não opilado - repeti, tomando nota. - Que diabo ele pretende com isso?
- Não sei não, senhor. Mandou trasmitir o recado, estou transmitindo.
- Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.
- Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de muita gente. Sexto: poeira é minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo...
- Chega! - protestei, estupefato. - Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.
- Deve ser carta em código ou coisa parecida - e ele vacilou: - Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim... Posso continuar?
- Continua. Falta muito?
- Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena. Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca, mas também dou meus pulinhos.
- Não tem dúvida, ficou maluco.
- Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio idiota... Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha:
- Que Rocha?
- Não sei: é capaz de ser a assinatura.
- Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!
- É, mas foi ele que mandou, isso foi.
Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só então me lembrei: haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas costumam pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja sempre pelo interior fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei me esquecendo completamente o trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera.
Agora, o material ali estava, era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado: Rocha era o motorista. Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.

do livro Para gostar de ler, Vol. 4. Editora Ática.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

AS FLORES NÃO FALAM


Pode ser uma perda de tempo perguntar se as flores falam por si, ou se sua beleza depende de nosso olhar para elas. Na música do Cartola, "As rosas não falam", uma estrofe diz: "Queixo-me às rosas, mas que bobagem/as rosas não falam/simplesmente as rosas exalam/o perfume que roubam de ti, ai...".
O que representam as flores em nossa vida? Imagino que o que vale é nossa relação com elas. O cuidado que temos com nosso jardim. Disse-me uma amiga: "Cuide do teu jardim. As borboletas sempre voltam para apreciar um jardim florido". Na hora interpretei seu comentário como uma obeservação a respeito de como me mostro aos outros. Nosso jardim é nosso retrato.
Uma piada que li no jornal Zero Hora de hoje ilustra isso:
"A família está reunida, olhando antigos álbuns de fotografias. Lá está  a foto de um jovem belo e elegante. A Mariazinha vira-se para a mãe e pergunta:
- Mamãe, quem é esse homem tão bonito?
- É o seu pai, Mariazinha.
Então a menina chega mais perto da mãe e fala bem baixinho:
- E quem é esse gordo, careca, feio e chato que mora aqui com a gente?"

O valor das flores se dá pela humanidade (nem sempre romântica?) que depositamos nelas.
Poderíamos afirmar que as flores retribuem o nosso carinho para com elas emprestando-nos sua beleza. Mas isso só vale se nós o notamos.
Independente dos motivos (muitas vezes "inconscientes") que temos para ir ao seu encontro. Podem ser esquisitos, estranhos, jogos de vaidade, simples negócios...
O mais importante, talvez, não seja atribuir um caráter divino à beleza das flores. Temos a tendência de colocar nas mãos de Deus o que não conseguimos explicar, por exemplo o mistério, o belo. Ou não é nada disso: quem sabe - ao captarmos a beleza de algo, seja uma música, um poema, um quadro, uma flor - estejamos conversando com Deus... Ou Deus está chamando nossa atenção, para que relaxemos, nos afastemos um pouco das nóias corriqueiras.
Se o  momento de nossa contemplação da beleza é divino, então esse é o momento em que conversamos com Deus.
Assim, a linguagem que Deus utiliza para conversar com a gente é a estética. No desabrochar de uma flor, na melodia de uma canção, no canto de um sabiá, Deus está nos chamando para fazer "arte".

A história abaixo, A penitência das flores, de Heloisa Seixas, mostra uma relação surpreendente do personagem com as flores. O pano de fundo é uma história trágica de amor (irrealizado, interrompido). O velhinho vende as flores para pagar seus pecados.


A PENITÊNCIA DAS FLORES - Heloisa Seixas

Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata-borboleta cor de sangue. Na cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também e um tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas de várias cores dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu avenca.
O velhinho que vende flores.
Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez mais ainda - porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por uns instantes, as mulheres esticando os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.
Nesse instante, o garçom, meu conhecido - e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de flores -, chegou a meu lado e disse:
- Está fazendo trinta anos hoje.
- É mesmo?
- É - respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele restaurante há mais de vinte anos.
- Como você sabe?
- Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?
- É verdade - respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.
Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano. Ele me olhou como se me varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história eu já conhecia. Só não sabia que, naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem-nascido, que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao ao sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.
Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.
- Às flores - disse.
E ele sorriu. Em sua loucura, sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua penitência. E sua redenção.

do livro Contos mínimos, editora Bestseller.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...