sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Causos do Nono

Meu pai, Seu Carleto, levava uma vida exemplar. Se algum amigo ou vizinho saía da "verga", ele era chamado pra colocar as coisas no lugar.
Qualquer desavença familiar, briga de marido e mulher, ou algum vizinho ou conhecido que "loquiou", seu Carleto logo era chamado.
Um dia o filho do Bépi veio contá que seu pai tava variando. Pensava que era metade gente, metade animal. Era um vivente tranquilo, com seu palheiro e o mate, sua fala mansa. Mas ultimamente tinha um comportamento estranho. Meu pai quis saber detalhes do caso:
- Que animal ele pensa que é?
- Cavalo.
- Que metade?
- A de baixo.
Curioso, meu pai foi visitar o Bépi. Era hora do lanche da tarde, e o o Bépi mastigava seu milho.
- Buenas tardes - disse meu pai - um cavalo meu fugiu, e acho que veio pra essas bandas.
Bépi duvidava muito de que um cavalo de meu pai estivesse nas suas terras. Mesmo assim saíram para o campo. Meu pai a cavalo e seu Bépi trotando do seu lado. Olharam toda tropa. E então meu pai começou a examinar o Bépi de cima até embaixo.
- Tá me examinando por que? - perguntou seu Bépi, desconfiado.
Aí meu pai falou:
- Acho que tô reconhecendo meu cavalo.
- Tá louco? Eu sou o Bépi!
- Só até a cintura.
- Pra baixo trambém é meu!
- Então mostra a marca!
- O quê??
- Quero ver a marca na bunda. Se não tem marca, então é meu!
Discutiram uns minutos e, no fim, seu Bépi se convenceu de que não era metade cavalo. A família suspirou aliviada. Não aguentava mais a bosta no tapete!

***

Na hora de explicar uns acontecimentos estranhos, que deixavam todo mundo de queixo caído, meu pai recorria a um punhado de provérbios. Eis alguns deles:
"Mate e china, quanto mais novo, mais quente".
" Hai mil regras pra comê mas nenhuma pra cagá".
"Pra segurá mulher em casa e cavalo em campo aberto, só carece de um pau firme".
"A gengiva não morde mas segura os dente".
"Puro-sangue ou bagual, a bosta é igual".
"Meleca de rainha é igual à minha".
"Roda de carreta chega cantando e se vai gemendo".
"Mas vale ser touro brocha que boi tesudo".
"Más sagrado que Deus e a mãe, só dívida de jogo".
"Más triste que tia em baile".
"Cavalo de borracho sabe onde o bolicho dá sombra".
"Marido de parteira dorme do lado da parede".
"Viúva moça é como louça: já foi usada mas não se joga fora".
"Se Deus fez o mundo em sês dias, só no Rio Grande gastou cinco".

(História recontada a partir de L. F. Verissimo, do livro A velhinha de Taubaté. L&PM Editora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A crônica





Na Semana da Pátria postamos aqui a crônica intitulada "Meu ideal seria contar uma história...sobre nossa pátria", que foi inspirada na crônica de Robem Braga, Meu ideal seria escrever...
Apresentamos esse texto na abertura da Semana da Pátria do IMEAB (Instituto Municipal de Ensino Assis Brasil/Ijui/RS). A professora dessa escola e do CSCJ (Colégio Sagrado Coração de Jesus/ Ijuí/RS), Nilza Piovesan Mânfio, exercitou o gênero crônica com seus alunos das sextas séries do CSCJ, partindo do meu texto e da crônica de Rubem Braga. Vai, a seguir, um pouco dos resultados da oficina realizada por ela. 


CRÔNICA

A crônica é um gênero narrativo que trata de temas da atualidade. Normalmente é publicada em jornal ou revista. Destina-se à leitura diária ou semanal e trata de acontecimentos cotidianos.
A crônica se diferencia da notícia por não buscar a exatidão da informação. O cronista procura analisar os acontecimentos, dando a eles um colorido emocional, incluindo elementos de ficção e fantasia.
É um texto geralmente curto, escrito em 1ª pessoa, podendo conter diálogo ou não.

Leia algumas crônicas produzidas pelos alunos da 6ª série

Saudades daquele gaúcho - Júlia Dalmás

Saudades daquele gaúcho...
Que não se importava e colocava botas, bombacha, lenço no pescoço e vestia o orgulho de trabalhar no campo.
Que ao invés de cerveja e cigarro, tomava chimarrão e saboreava o churrasco.
Saudades daquele gaúcho que não se preocupava com contas para pagar, com roupas caras e com joias para a esposa. Que nas tardes de domingo reunia a família, tomava chimarrão e contava causos.
Saudades de quando esse mesmo gaúcho, cantava o hino do Rio Grande do Sul com orgulho, sem pensar muito em trabalho, ou no carro zero Km que tanto queria comprar.
Saudades daquele gaúcho, que passeava com seu cavalo na querência amada, só para sentir o vento bater no rosto e respirar o ar puro da natureza.
Hoje em dia o ar que respiramos é o da poluição, fazendo com que as árvores morram, deixando um ar pesado de tristeza.
E hoje, o gaúcho que vemos, é moderno, usa roupas de marca e anda em seu poderoso carrão.
O gaúcho de hoje perdeu a cultura, o orgulho, embora ainda se chame de forte. O gaúcho de hoje mais se parece um americano esbanjando chiqueza, do que aquele dos campos, que era forte, cultivava a cultura e suas raízes.




Ponto de vista - Giovani Pasquali Piovesan
 O juiz já estava no meio do campo e a TV ainda mostrava a novela das nove. No bar a torcidinha organizada aguardava o início com batata frita, refrigerante, cerveja, torrada e até xis. Estava lá ele, Afonsinho, o ídolo do time, o camisa 10, ansioso, pois poderia fazer o seu milésimo gol, e então, como sempre, ele faria de pênalti.
Num prédio ao lado, um grupo de empreendedores se decidia entre o produto novo e o velho que rende mais, mas eles sempre vão pelo caminho mais fácil.
Na rua, dois homens discutem, um sábio e um burro. O sábio fala uma frase e o menos inteligente não entende, e então repete a frase e sai se achando. Gostaria de saber por que a sociedade é assim? Por que é tudo pelo caminho mais fácil, por que não tentamos viver uma vida mais tranquila, sem tantas preocupações e mais feliz?

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Vidraça




A chuva envidraçou



Uma tela surreal


Com sua tinta incolor.






As nuvens no céu

eram para o menino


orquestras

de dinos e monstros.



Fiz a bolha de sabão


na garrafa de minha idade


abusei da infância


no tropel de


minhas brasas...



E abri vertentes


de mãos e rugas


doidas das minhas

asas!


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O nariz - Luis Fernando Verissimo


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.


- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
- Isso o quê?
- Esse nariz.
- Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai…


Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.


- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz…
- Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele assim. Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por quê não?


Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.


- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre esse nariz…
- O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Se não faz diferença, porque não usar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!


A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.


- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…


O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A arte de esquecer




Meu PC está com Alzheimer e eu me pergunto o que (não) fiz para evita-lo.
Tenho um blog que encho de histórias, boa parte contadas pelos outros, porque morro de medo de começar a sofrer desse mal.
A amnésia do meu computador, dizem, é porque ele está com a memória muito cheia. Mas eu não queria descartar o que gravei nele durante esses anos.
De minha parte, morro de medo de cair no esquecimento, por isso devoro textos e autores, como a traça que não quer morrer de fome.
Já estou sofrendo, imaginando o dia que for trocar o PC antigo por um atualizado. Não quero perder o rastro que nele deixei e, ao mesmo tempo, não quero me torturar diante de uma memória (cibernética?) quase ilimitada.
Já tive minha vontade de dilúvio, apagar tudo, começar do zero. Como fez Noé, continuar com o que se tem de melhor. Ou como faz a cozinheira, quando escolhe os grãos de feijão para colocar na panela. Porém, com as lembranças não dá para classificar, separar o joio do trigo. Temos que negociar com a memória a recordação das coisas ruins – por exemplo, as da infância que, mesmo camufladas, podem um dia retornar e nos atormentar.
Recebo uma mensagem por e-mail implorando para que não esqueça do Holocausto. Ainda mais diante de alguns discursos que circulam por aí dizendo que nada disso aconteceu.
Essa realidade me assusta: não estou exercitando, diariamente, a amnésia, ao olhar só para frente, instigado por desejos que não são meus desejos? É. Diariamente somos empurrados, pela sociedade, ao esquecimento.
Para fugir disso, rabisco agendas, tiro fotos de pessoas e lugares, invento frases com pretensão de serem pensamentos. Guardo caixas e caixas de objetos antigos, mesmo camuflados diante dos olhares desconfiados dos outros.
Na "necessidade" de chamar a atenção, perdi a noção do que é perene e do que é efêmero.
Como não há solução, porque é relativo o que permanece e o que é descartável, me divido entre o canto do sabiá nesse começo de primavera, os objetos (descartáveis?) que posso comprar com o salário que ganho, e a possibilidade (necessidade?) de manter viva a idéia de amor que seja mais do que paixão (efêmera?). 
Será que o Vinicius de Morais nos sacaneou quando disse, sobre o amor:

(...)Quem sabe a morte, angústia de quem vive

quem sabe a solidão, fim de quem ama
eu possa me dizer do amor ( que tive ) :
que não seja imortal, posto que é chama
mas que seja infinito enquanto dure.

Ah! Pelo menos do amor nós esperamos a perenidade. Mas o problema não é o amor em si: somos nós, que amamos do jeito que amamos!

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...