sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Cada um com a sua vaca! - Ziraldo



Era uma vez dois irmãos. O pai deles morreu e eles herdaram duas vacas. Depois do enterro, foram dividir a herança.
- Zé, como vamos fazer pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Olha, Tunico, tive uma idéia. Eu corto a orelha da minha vaca. A vaca com orelha fica sendo sua e a sem orelha fica sendo minha.
E assim fizeram. Mas eles tinham um vizinho que adorava enganar os outros e de noite foi lá e cortou a orelha da outra vaca. De manhã, os irmãos entraram em pânico:
- E agora Zé, como fazemos pra saber qual é a sua vaca e qual é a minha?
- Vamos cortar a outra orelha da sua vaca. A vaca que tem ainda uma orelha fica sendo minha e a sem orelhas fica sendo sua.
Concordaram. Mas, de noite, o vizinho foi lá e cortou a orelha da outra vaca também.
Na manhã seguinte, novo pânico.
- Que fazemos, Tunico?
- Vamos cortar os chifres.
E cortaram os chifres de uma das vacas pra fazer a diferença.
O vizinho foi lá e cortou os chifres da outra vaca.
E aí surgiu outro impasse.
- E agora, Zé?
- O rabo, Tunico.
E cortaram o rabo de uma das vacas.
- Agora a vaca com rabo é sua e a sem rabo é minha – disse o Tunico.
Na manhã seguinte, o vizinho malvado tinha cortado o rabo da outra vaca.
Os dois irmãos se desesperaram.
- E desta vez, o que vamos fazer?
Tunico pensou, pensou. Zé pensou, pensou. Ao mesmo tempo, os dois tiveram uma idéia:
- Vamos fazer o seguinte: você fica com a vaca branca e eu fico com a vaca preta.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Meu ideal seria contar uma história... sobre a nossa Pátria



Meu ideal seria contar uma história... engraçada de nossa pátria.
Dizem que nossa pátria-moça está doente, por causa de tanta violência, corrupção e miséria... Gostaria que todos, quando ouvissem minha história sobre nossa pátria, rissem e se alegrassem tanto, tanto, que telefonassem para seus irmãos, amigos, vizinhos, para que todos ficassem espantados ao ver a história de nossa pátria tão alegre.
Que minha história sobre a pátria “seja como um raio de sol (...) quente, vivo”, e possa assim iluminar essa moça-pátria que dizem estar sofrida, enlutada, doente...
Que as pessoas que estivessem mal-humoradas, estressadas e sem esperança, pudessem ser atingidas pela minha história, e se alegrassem a mais não poder. Que se lembrassem dos velhos tempos, repletos de sonhos de um mundo melhor para todos.
Que nas cadeias, hospitais e escolas, a história de minha pátria chegasse – “e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria”.
Que nossos representantes políticos, depois de ouvirem a minha história sobre nossa pátria, se envergonhassem de qualquer gesto que não seja em defesa do bem comum. Que cada cidadão, ao escolher seus representantes políticos, não esquecesse de que suas escolhas eleitorais são apostas no futuro.
Enfim, que todos tratassem melhor seus empregados, suas crianças, e todos os seus semelhantes, em alegre e espontânea homenagem à nossa pátria amada.
“E que minha história se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras”, que fosse atribuída a todo e qualquer habitante do mundo, de qualquer cultura ou religião. “Mas que em todas as línguas ela guardasse a sua pureza, o seu encanto surpreendente”. E que no fundo de cada vilarejo um camponês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: ‘Nunca ouvi uma história sobre a pátria assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem; foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.
“E quando todos me perguntassem – ‘mas de onde é que você tirou essa história?’ – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história de nossa pátria-moça...”
“E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo” quando ouvi dizer que minha pátria está triste e doente, esquecida e abandonada por todos nós.
Essa história inventada é, portanto, um gesto de amor e solidariedade, repleto de vontade de tornar melhor o futuro de nossa pátria, que significa o futuro de todos nós.

(O texto acima é uma releitura da crônica de Rubem Braga, transcrita abaixo.)

Meu ideal seria escrever... (Rubem Braga)

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".


Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.


Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.


E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".


E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".


E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

A crônica acima foi extraída do livro A traição das elegantes, Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág.91.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O mundo precisa de mais orgasmo



Não fui eu que inventei. Um amigo descobriu. Disse que essa valente indiada não tá precisando só de comida, bebida, roupa nova, cama, mesa, banho e coisa e tal.
Satisfeitas as necessidades vitais, é de orgasmo que o mundo precisa.
A vizinha ou colega que morre de inveja da outra, e que só faz fofoca, é por causa do vazio do orgasmo, não tem dúvida. O marido ou amante com certeza anda estressado, com pressa pra acumular e, na hora h, diz estar com enxaqueca. Descuidou do orgasmo (dele e o dela), e é por isso que os donos dos motéis enriquecem a mil.
As brigas por qualquer coisa, e as divergências políticas, Maragatos e Chimangos campo a fora, esquerda, direita, ideologias, o motivo é o mesmo: a ressaca do orgasmo, não pode ser outra coisa!
Os vícios, as drogas, bebedeiras, marmanjos com carros barulhentos e em alta velocidade, é tudo por falta de orgasmo.
Alguns enlouquecem, se enforcam nas neuroses e manias, morrem de inveja do sucesso dos outros, só por descuidarem do orgasmo.
Eu tenho um orgasmo quando leio o Poeminha do contra, do Quintana:


Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho
eles passarão...
Eu passarinho!


Pra terminar, afirmo (antes que alguém me jogue isso na cara), que eu tenho essa obsessão por escrever alguma coisa aos meus leitores (cinco ou seis??) porque ando carente de orgasmo. Vá saber...

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Era uma vez um sapo...



Ela me disse que as histórias que conto se parecem comigo. Ora - pensei – mas que garota pretensiosa!
Na tentativa de arrumar minha defesa e surpreender no contra-ataque, em vez de me olhar no espelho fui chafurdar seus defeitos. Droga, não encontrei nenhum! Algo errado acontece comigo...
Eu só queria rir um pouco, neste final de inverno cinzento, úmido e frio, com a tristeza passeando à vontade, pela vida e pelas folhas dos jornais.
Sim, eu sei que ela me enxerga um velho sonhador (não significa exatamente o mesmo que “sonhador velho”). E sei que e a história que contei pra ela fala, realmente, de um sapo sonhador!
Para não ser chato, decidi pular esse assunto, por isso não recitei o poema do Mário Quintana, que fala assim dos sonhos:

Se as coisas são inatingíveis... ora! 
Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mas ela – com seu olhar de inicio de primavera e ironia cortante como o vento sul de agosto – tem razão, ao me colocar dentro das histórias que conto, com a roupa dos personagens.
Bem, vai a seguir as história que eu contei pra ela.


Dois sapos – o sapo sapo


Era uma vez um sapo que pensava que era um príncipe transformado no bicho verde e enrugado que agora era. Ele lembrava de ter morado num castelo, vestido roupas de seda e brincado de cavalgar um pônei branco de pelúcia.
Mas, para conseguir um beijo de uma princesa, ele precisava de uma pepita de ouro. Ele cansou de procurar a pepita salvadora e não achou. Então ele pintou uma pedra com tinta dourada e cantou a música de chamar princesas beijoqueiras. Apareceu uma que nunca tinha beijado um sapo antes, e, por isso, não sabia direito como era uma pepita de ouro. Ela acreditou que a pedra pintada fosse mesmo de ouro e foi logo pegando e beijando o sapo.
Acontece que o sapo não era príncipe encantado coisa nenhuma e continuou sendo o bicho verde e enrugado que sempre foi. A princesa jogou a pedra pintada para o sapo e foi embora correndo, envergonhada, pensando que o beijo dela não tinha funcionado.
A pedra bateu na cabeça do sapo e ele se lembrou de que as memórias do castelo, roupas de seda e pônei de pelúcia eram de um sonho lindo que uma noite ele tinha sonhado.
Envergonhado, também, e triste, o sapo pulou para dentro da lagoa onde morava, resolvido a se matar afogado. Mas lembrou que sabia nadar bem até demais, ganhando a nota máxima de sua turma na escola, e por mais que tentasse não conseguia se afogar. E então já ia pular para uma estrada que havia lá perto, para ser atropelado por uma carroça, quando viu uma sapa que tomava sol sobre uma grande flor cor-de-rosa.
Seu coração bateu depressa, sua lingua se esticou para fora da boca. A sapa piscou para ele, dengosa. E lá se foi o sapo, nadando nas águas da lagoa,  já se esquecendo dos pôneis de seda, castelos de pelúcia e roupas de pedras pintadas com tinta dourada!

(Flávio de Souza. Príncipes e princesas, sapos e lagartos. São Paulo, FTD, 1996.

sábado, 20 de agosto de 2011

Aquele estranho animal - Mário Quintana




Os do Alegrete dizem que o causo se deu em Itaqui, os de Itaqui dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada: sou neutro.

Mas, pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei, e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades... Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.

Ia um piazinho estrada fora no seu petiço – tropt, tropt, tropt – (este é o barulho do trote) – quando de repente ouviu – fufufupubum! Fufufupubum chiiiipum!
E eis que a “coisa” então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.
“Minha Nossa Senhora!”

O piazinho deu meia volta e largou numa disparada louca rumo da cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.
É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.
Chegado que foi, o piazinho contou a história como pôde, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.

Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo para carregar de pólvora, outros com boleadeiras, mas todos de a pé, porque também nem houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando as suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com os seus bodoques, cujos tiros iam acertar em cheio nas costas do combatentes. E tudo abaixo de gritos e pragas que nem lhes posso repetir aqui.


Até que enfim houve uma pausa para respiração.


O povo se afastou, resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio da qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.


- A la pucha! – exclamou então um guasca, entre espantado e penalizado – o animal deu cria!


O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...