sábado, 11 de junho de 2011

Quero te amar...



Quero te amar sempre que sentir tua falta
porque o amor precisa ser desejado.
Quero te amar sem estar culpado
se passei o dia pensando em mim.
Quero ser sozinho de vez em quando
porque eu gosto da solidão.
Quero ficar sozinho de um jeito brando
pra despertar o amor no meu coração.
Não quero o amor pasteurizado
amor a vácuo empacotado num cruzeiro
com centenas de fotos e book
pra exibir aos amigos e companheiros.
Não quero amor com segurança
e vigilante o dia inteiro.
Não quero o amor raquítico, esquálido
prefiro o suave, que serve de calmante
amor com açúcar mascavo
no lugar do adoçante.
Não quero amor paparicado
amor com hora marcada
amor badalado, amor da moda.
Meu amor quer música suave
e um pouco de silêncio, mais nada.

***

Teu silêncio me desconcerta
tua tristeza me destempera
teus suspiros me alertam
tua boca me acelera
teu sorriso me pondera
teu calor acorda as feras.
À noite eu liberto minhas quimeras
e a tristeza então é primavera!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O preço da paixão


É muito relativo sabermos o preço que pagamos, no convívio social, ao manifestarmos nossas paixões.



Um amigo meu fez comentários a respeito do dono do bar que ele frequenta, quando vai assistir os jogos da dupla grenal. O dono desse bar é torcedor apaixonado, e manifesta sua paixão como se estivesse assistindo o jogo na geral do estádio. Xinga o técnico pelas escolhas que este faz ao escalar determinado jogador, e xinga também algum torcedor mais exaltado (seu cliente), se este o contrariar.


Ele não se preocupa com o linguajar da economia, com equações do tipo “custo-benefício”. Não está nem aí para o fato de que, no cotidiano dos negócios, implicitamente, “operam” equações econômicas.


Porém, desconfio que os clientes observam a sua performance. E se suas manifestações apaixonadas conflituam com as manifestações de seus clientes, então ele pode estar conduzindo mal os negócios.


Temos curiosidade a respeito da vida dos outros. Observamos tudo o que acontece por aí. Prestamos atenção na maneira como os outros jogam e, se nos decepcionam, nos afastamos.


Com tantas novidades, mudamos de lugares e de pessoas que frequentamos. Acho que nunca como agora fomos tão ciganos. É que triplicam os convites, tanta gente colocando-se na vitrine.


Quando falo do cuidado que precisamos ter ao externarmos nossa paixão, não me refiro apenas aos negócios, mas a todas as esferas onde se dão as relações humanas.


Admiro as pessoas que conseguem se manter equilibradas na sociedade, e que passam aos outros uma imagem positiva, e assim servem de modelo para as gerações mais jovens.


Foi o que senti ao ver pela TV a despedida, do futebol, de Ronaldo Nazário.


Senti inveja. Uma inveja boa. Aquela inveja que me permitiu a seguinte pergunta: como estou conduzindo minha vida no contexto social, onde influencio e sou influenciado pelos outros?


domingo, 5 de junho de 2011

Felicidade clandestina - Clarice Lispector



Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuia o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para o aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima pslsvras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.



Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.


No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.


Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.


E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.


Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.


Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!


E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.


Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.


Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.


Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.


Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Felicidade clandestina. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Minha imaginação


Dou rédeas à imaginação e ela, no seu tropel delirante, traça planos pouco honestos. Doida para obter vantagens, corrompe e atropela os outros, quer ganhar dinheiro, estátus, granjear respeito.
Promete que, se ganhar sozinha a bolada da mega-sena, vai doar metade às instituições de caridade. Mas basta me distrair, e ela foge com todo o dinheiro, abandona e ri dos amigos e familiares. Nenhum remorço, ao contrário, a imaginação deleita-se de prazer por levar vantagem.
Acordo e meu sentimento de culpa recupera o fôlego, tenta manter o controle da realidade. Tenho tarefas a cumprir, pai, trabalhador, vizinho, amigo. Educação, boas maneiras, otimismo, bom humor...
Não é por acaso, minha formatação deu-se com o passar de vários séculos, para que eu pudesse me sustentar nos trilhos.
Deveres, obrigações. A razão se desdobra para se convencer de que haverá recompensa no final.
A imaginação é cúmplice dos sete pecados capitais. Se depender dela, os pecados serão muitos mais! Proliferarão, mesmo que corrompam de vez todo mundo.
Se ela me traz deleite no início  e no meio do caminho, me abandona no final. Sofro na hora da colheita. Tento convencer a mim mesmo de que a imaginação precisa de rédea curta. Devo inventar prazeres que a substituam. Prazeres que não são bem prazeres. Não exatamente como eu queria. São meros quebra-galhos.
Tapo o sol com a peneira, deixo a vida me levar, um dia de cada vez.
Mas eu sei. O tempo me ensinou. Algo no meu ser o comprova. Basta um descuido, e a imaginação corrompe a tudo e todos.
Mas, paradoxalmente, sem ela tudo se torna tão chato e previsível!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Picoletes - Apparicio Silva Rillo


Ao Coscós, para burro completo, só faltava as guampas. Como burro não tem guampas...

Numa de suas idas a São Luiz Gonzaga o Coscós conheceu o picolé, ainda raro por aquelas bandas na época deste causo. Experimentou, gostou, comeu uns quinze.

Chegou na estância, de volta, e contou a novidade do  tal de "picoletes". Uma beleza! Gostoso! Friozinho! Pena que tinha um defeito...

-  Que defeito, Coscós?

- Mais molengão do que pica de véio. Comprei uma dúzia, botei no bolso da bombacha, montei a cavalo e me mandei. Comecei  a sentir um friozito nas bolas mas não dei atenção. Quando cheguei na estância me assustei. Havia desaparecido os picoletes. Só me sobraram os pauzinhos dos vivente...


Do livro Rapa de tacho 3. Porto Alegre, Tchê, 1984.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...