sábado, 30 de abril de 2011

A aventura do cotidiano - Fernando Sabino




Todo dia ele ia para o botequim encher a cara e, quando chegava em casa, por qualquer coisinha descompunha a mulher, baixava o braço nos filhos mais velhos. Até que um dia avançou também para o menorzinho, mas a mulher o conteve, interpondo-se com decisão:
- Neste você não bate, que esse não é seu.

Do livro A falta que ela me faz. Rio de janeiro, Record, 1980.

domingo, 24 de abril de 2011

ANALOGIA






Estou comprimido
entre o bem e o mar
loucura e ilusão do sol.
Alegria e beleza
criação e tristeza.
Estou descuidado
como senhor e escravo
passaporte e juízo final.
Iludido como águia
que pousou no meu quintal
aturdido, como vôo inaugural.
Estou esquecido
como bom profissional
nos trilhos, como trem
             ao "Deus dará".
Estou endividado
como santo aposentado
ressabiado, como quem acorda
e não é manhã de sábado
como quem passeia e lava o cão
num domingo ensolarado.
Estou indignado
como futuro com alzeimer
como passado esquizofrênico
como fanático abstêmio.
Estou encurralado
como quem ficou sozinho
e percebeu, neste triste dia,
    que não passa de analogia
                                      analogia
                                           analogia...

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A barata e o rato - Millôr Fernandes



Era uma dessas baratinhas brancas e nojentas, acostumadas só a imundície e ao monturo, comendo calmamente sua refeição composta de um pedaço de batata podre e um pedaço de tomate podre (1). Chegou junto dela um Rato transmissor de peste bubônica e lhe disse: "Comadre, ontem tive uma aventura extraordinária. Estive num lugar realmente impressionante, como você, comadre, certo jamais encontrará em toda sua vida." Barata comendo. "O lugar era uma coisa que realmente me deixou de boca aberta", - prosseguiu o Rato - "tão espantoso tão diferente é de tudo que tenho visto em minha vida roedora" (2). Barata comendo. "Imagina você" - prosseguiu o Rato - "que descobri o lugar por acaso. Vou indo numa das cavidades subterrâneas por onde passeio sempre, entrando aqui e ali numa casa e noutra, quando, de repente, percebo uma galeria que não conheço. Meto-me nela, um pouco amedrontado por não saber onde vai dar e de repente saio numa cozinha inacreditável. O chão, limpo, que nem espelho! Os espelhos, de um brilho de cegar! As panelas, polidas como você não pode imaginar! O fogão, que nem um brinco! As paredes sem uma mancha. O teto claro e branco como se tivesse sido acabado de pintar! Os armários, tão arrumados e cuidados que estavam até perfumados! Poeira em nenhuma parte, umidade inexistente, no chão, nem um palito de fósforo...


E foi aí que a Barata não se conteve. Levou a mão à boca num espasmo e protestou: "Que mania! Que horror! Sempre vem contar essas histórias exatamente no momento em que a gente está comendo!"



Moral: Para o vírus a penicilina é uma doença.
Submoral: A ecologia é muito relativa.


(1) Causando inveja a muita gente.
(2) O rato rói. É a sua sina.



domingo, 17 de abril de 2011

COTIDIANO



Concentrados no cotidiano
os homens avançam.

Amanhã
o mundo vai acabar.

Muito pode ser feito:
trabalhar, comer, dormir, acordar...
Como fazem os pássaros:
arrumar o ninho, por ovos, chocar...

A vida parece ordenar:
Depressa, depressa, vamos
transformar o entardecer!

Observo a rotina
protegido pela janela
e sua cortina.

Choca-me o incondicional:
sou racional,
mas não tenho asas para voar!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Jeito de correr - Sérgio Capparelli


Inventei um jeito
de correr veloz,
de correr voraz,
tão rápido, tão rápido
que às vezes me ultrapasso
e me deixo para trás.

111 poemas para crianças. Porto Alegre, L@PM, 2007.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...