quinta-feira, 21 de abril de 2011

A barata e o rato - Millôr Fernandes



Era uma dessas baratinhas brancas e nojentas, acostumadas só a imundície e ao monturo, comendo calmamente sua refeição composta de um pedaço de batata podre e um pedaço de tomate podre (1). Chegou junto dela um Rato transmissor de peste bubônica e lhe disse: "Comadre, ontem tive uma aventura extraordinária. Estive num lugar realmente impressionante, como você, comadre, certo jamais encontrará em toda sua vida." Barata comendo. "O lugar era uma coisa que realmente me deixou de boca aberta", - prosseguiu o Rato - "tão espantoso tão diferente é de tudo que tenho visto em minha vida roedora" (2). Barata comendo. "Imagina você" - prosseguiu o Rato - "que descobri o lugar por acaso. Vou indo numa das cavidades subterrâneas por onde passeio sempre, entrando aqui e ali numa casa e noutra, quando, de repente, percebo uma galeria que não conheço. Meto-me nela, um pouco amedrontado por não saber onde vai dar e de repente saio numa cozinha inacreditável. O chão, limpo, que nem espelho! Os espelhos, de um brilho de cegar! As panelas, polidas como você não pode imaginar! O fogão, que nem um brinco! As paredes sem uma mancha. O teto claro e branco como se tivesse sido acabado de pintar! Os armários, tão arrumados e cuidados que estavam até perfumados! Poeira em nenhuma parte, umidade inexistente, no chão, nem um palito de fósforo...


E foi aí que a Barata não se conteve. Levou a mão à boca num espasmo e protestou: "Que mania! Que horror! Sempre vem contar essas histórias exatamente no momento em que a gente está comendo!"



Moral: Para o vírus a penicilina é uma doença.
Submoral: A ecologia é muito relativa.


(1) Causando inveja a muita gente.
(2) O rato rói. É a sua sina.



domingo, 17 de abril de 2011

COTIDIANO



Concentrados no cotidiano
os homens avançam.

Amanhã
o mundo vai acabar.

Muito pode ser feito:
trabalhar, comer, dormir, acordar...
Como fazem os pássaros:
arrumar o ninho, por ovos, chocar...

A vida parece ordenar:
Depressa, depressa, vamos
transformar o entardecer!

Observo a rotina
protegido pela janela
e sua cortina.

Choca-me o incondicional:
sou racional,
mas não tenho asas para voar!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Jeito de correr - Sérgio Capparelli


Inventei um jeito
de correr veloz,
de correr voraz,
tão rápido, tão rápido
que às vezes me ultrapasso
e me deixo para trás.

111 poemas para crianças. Porto Alegre, L@PM, 2007.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A estranha passageira - Stanislaw Ponte Preta


- O senhor sabe? É a primeira vez que eu viajo de avião. Estou com zero hora de vôo - e riu nervosinha, coitada.


Depois me pediu que eu me sentasse ao seu lado, pois me achava muito calmo e isto iria fazer-lhe bem. Lá se ia a oportunidade de ler o romance policial que eu comprara no aeroporto, para me distrair na viagem. Suspirei e fiz o bacano respondendo que estava às suas ordens.


Madama entrou no avião sobraçando um monte de embrulhos, que segurava desajeitadamente.


Gorda como era, custou a se encaixar na poltrona e arrumar todos aqueles pacotes. Depois não sabia como amarrar o cinto e eu tive que realizar essa operação em sua farta cintura.


Afinal estava ali pronta para viajar. Os outros passageiros estavam já se divertindo às minhas custas, a zombar do meu embaraço ante as perguntas que aquela senhora me fazia aos berros, como se estivesse em sua casa, entre pessoas íntimas. A coisa foi ficando ridícula:


- Para que esse saquinho aí? - foi a pergunta que fez, num tom de voz que parecia que ela estava no Rio e eu em São Paulo.


- É para a senhora usar em caso de necessidade - respondi baixinho.


Tenho certeza de que ninguém ouviu minha resposta, mas todos adivinharam qual foi, porque ela arregalou os olhos e exclamou:


- Uai... as necessidades neste saquinho? No avião não tem banheiro?


Alguns passageiros riram, outros - por fineza - fingiram ignorar o lamentável equívoco da incômoda passageira de primeira viagem. Mas ela era um azougue (1) (embora com tantas carnes parecesse mais um açougue) e não parava de badalar. Olhava para trás, olhava para cima, mexia na poltrona e quase levou um tombo, quando puxou a alavanca e empurrou o encosto com força, caindo para trás e esparramando embrulhos para todos os lados.


O comandante já esquentara os motores e a aeronave estava parada, esperando ordens para ganhar a pista de decolagem. Percebi que minha vizinha de banco apertava os olhos e lia qualquer coisa. Logo veio a pergunta:


- Quem é essa tal de emergência que tem uma porta só pra ela?


Expliquei que emergência não era ninguém, a porta é que era de emergência, isto é, em caso de necessidade, saía-se por ela.


Madama sossegou e os outros passageiros já estavam conformados com o término do "show".


Mesmo os que mais de divertiam com ele resolveram abrir os jornais, revistas ou se acomodarem para tirar uma pestana durante a viagem.


Foi quando madama deu o último vexame. Olhou pela janela (ela pedira para ficar do lado da janela para ver a paisagem) e gritou:


- Puxa vida!!!


Todos olharam para ela, inclusive eu. Madama apontou para a janela e disse:


- Olha lá embaixo.


Eu olhei. E ela acrescentou: - Como nós estamos voando alto, moço. Olha só... o pessoal lá embaixo até parece formiga.


Suspirei e lasquei:


- Minha senhora, aquilo são formigas mesmo. O avião ainda não levantou vôo.




terça-feira, 12 de abril de 2011

ECO - José de Nicola



Com certeza
não foi o marreco
quem descobriu o ECO.

Foi o Macaco
que, ao passar pela caverna,
chamou o amigo:
- Ô Marreco!
E, para surpresa geral,
a caverna respondeu:
- ECO, ECO.

O Macaco gostou
e ficava horas
conversando com a caverna:
- O homem diz que ama a Natureza,
                                      antigamente...
- MENTE... MENTE... - respondia a caverna.

Até que num dia sem sol
(depois de uma noite sem estrelas)
apareceu um homem
de fundos olhos cor de cinza
                  e queimou a mata
                     matou o macaco
                   comeu o marreco
              e quebrou a caverna
       (e calou o ECO,
                                  lógico!)


Do livro Entre ecos e outros trecos. São Paulo, Moderna, 1995.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...