quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Gita - Raul Seixas










- Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que Ele me falou:


Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado,
Não falo de amor quase nada,
Nem fico sorrindo ao teu lado.


Você pensa em mim toda hora.
Me come, me cospe, me deixa.
Talvez você não entenda,
Mas hoje eu vou lhe mostrar.


Eu sou a luz das estrelas;
Eu sou a cor do luar;
Eu sou as coisas da vida;
Eu sou o medo de amar.


Eu sou o medo do fraco;
A força da imaginação;




O blefe do jogador;
Eu sou!... Eu fui!... Eu vou!...


Gita! Gita! Gita!
Gita! Gita!


Eu sou o seu sacrifício;
A placa de contra-mão;
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição.


Eu sou a vela que acende;
Eu sou a luz que se apaga;
Eu sou a beira do abismo;
Eu sou o tudo e o nada.


Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra,
Do fogo, da água e do ar!


Você me tem todo dia,
Mas não sabe se é bom ou ruim.
Mas saiba que eu estou em você,
Mas você não está em mim.


Das telhas eu sou o telhado;
A pesca do pescador;
A letra "A" tem meu nome;
Dos sonhos eu sou o amor.


Eu sou a dona de casa
Nos pegue pagues do mundo;
Eu sou a mão do carrasco;
Sou raso, largo, profundo.


Gita! Gita! Gita!
Gita! Gita!


Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão;
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão.


Eu!
Mas eu sou o amargo da língua,
A mãe, o pai e o avô;
O filho que ainda não veio;
O início, o fim e o meio.
O início, o fim e o meio.
Eu sou o início,
O fim e o meio.
Eu sou o início
O fim e o meio.

Raul Seixas e Paulo Coelho

sábado, 11 de dezembro de 2010

COBRAS EM COMPOTA - Índigo






Cobras em compota


Quando eu era pequena, os vidros de maionese eram bem maiores. Não devia existir colesterol naquela época e é aí que começou o problema. Por serem vidros grandões, comportavam cobras enroladas dentro. No laboratório de ciências havia uma prateleira cheia deles.
Se não fosse por esses vidros de maionese, eu poderia ter ido melhor na matéria. Mas com eles ali, impossível. Eu só queria abri-los, meter a mão dentro e puxar uma cobra pelo pescoço. Eu a giraria no ar, feito laço de boiadeiro.
Passávamos de ano e elas ali, provocando. Nunca chegou a série certa para estudá-las. Lembro-me que, de vez em quando, no meio da aula, alguma cobra de índole mais atrevida sibilava para mim. Eu ignorava.
Com o tempo aprendi que, caso abrisse um desses potes, ela pularia em mim, fincaria seus dois únicos dentes no meu pescoço e eu me transformaria numa delas. Eram todas ex-alunas mal intencionadas...



O pintinho e o analista



Um dos motivos por que não faço terapia
é por saber que lá pelas tantas o analista
vai perguntar:
“Qual é a sua primeira memória de infância?”
E como estarei pagando os olhos da cara,
vou me sentir na obrigação de dizer a verdade.
Mas como é que se diz: “sou eu correndo
atrás de um pinto”, sem abrir espaço
para as interpretações mais estapafúrdias?
Era um desses pintinhos amarelos de
feira. Naquela época crianças ganhavam
pintos quando iam à feira com suas mães.
Seu nome era José, e quando busco a mais
remota das lembranças, é esse pinto que
encontro. José correndo pela escada de incêndio,
e eu atrás, chamando por ele. José
some e eu volto para casa sem o pinto.
Dito isto, o analista vai tossir e fazer um
barulhinho do tipo:
“A-hã...”
Isto me irritará profundamente e eu começarei
a me explicar melhor, o que apenas
piora a situação.


Livros pompom



Sempre que me deparo com livros que soltam gritinhos e têm pelúcia na capa, eu me pergunto:
"Por que não escrevo coisas assim, fico rica e viajo o mundo?"
A fim de tentar responder esta pergunta, criei um sistema de leitura para livrinhos desse tipo. Antes de ler suas cinco páginas de texto, avalio o que eu teria feito. O de ontem tinha antenas e se chamava Bia, a abelha. A minha Bia, a abelha, seria:
1) na verdade um coelho, que nasceu num corpo de abelha e, por ter natureza de roedor, rói o caule das plantas e é expulso da colméia.
2) Uma abelha que foge por não concordar com os caprichos da rainha e começa uma sociedade alternativa, que não dá certo porque ninguém trabalha, só ficam tocando violão ao redor da fogueira.
3) Uma abelha que tem um zumbido no cérebro, acaba se perdendo na floresta e tem que se infiltrar em outra colméia, onde as regras são diferentes.
Então abro o Bia, a abelha oficial. O que eu devia ter escrito, para ficar rica e viajar o mundo, é a história de uma abelha que não sabia que para chegar às flores ela tinha que voar. A idiota escalava. Para o desfecho eu teria que criar uma joaninha que explica à Bia que ela devia bater suas asas. Final feliz.

Índigo, do livro Cobras em compota, Ministério da Educação - 2006.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

RETORNO

Ao regressares de viagem
retoco a maquiagem
subo no palco sem saber
qual será meu personagem.

Inventei punhados de papéis
rastejei por becos sem saída
mas nunca aceitei sua mão
dirigir minha vida.

Embaralhei os figurinos
estampas cores perfis
inventei tudo do jeito
que sempre quis...

Agora - tarde demais ou cena repetida? -
agora descubro que preciso correr
se quiser reinventar a minha vida!

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Ser filho é padecer no purgatório - Carlos eduardo Novaes

Psssiu, psssiu.
- Eu? – virou-se Juvenal apontando para o próprio peito.
- É. O senhor mesmo – confirmou o comerciante à porta da loja -, venha cá, por favor.
Juvenal aproximou-se. O comerciante inclinou-se sobre ele e como que lhe segredando algo perguntou:
- O senhor tem mãe?
- Tenho.
- Gosta dela?
- Gosto.
- Então é com o senhor mesmo que eu quero falar. Vamos entrar. Tenho aqui um presente especial para sua mãe.
- Tem mesmo? Mas por que o senhor não entrega a ela pessoalmente?
- Porque ela é sua mãe, não é minha. O senhor é que deve entregar o presente.
- Está bem. Então o senhor me dá que eu dou pra ela.
- Dar, não – corrigiu o comerciante -, infelizmente não estamos em condições. As vendas só subiram 75%. Vou ter que lhe vender presente.
- Mas eu não estava pensando em comprar um presente agora para minha mãe. O aniversário dela é em novembro.
- Não é pelo aniversário. É pelo dia das mães.
- Dia das mães? – repetiu Juvenal sempre desligado. – Mães de quem?
- Mães de todos. É depois de amanhã, domingo.
- É mesmo? E quem disse isso?
- Bem...
- Está na Bíblia?
- Não. Ele foi criado por nós, comerciantes, para permitir que vocês manifestem seu amor e carinho por suas mães.
- Puxa, vocês são tão legais. Eu não sabia que os comerciantes gostavam tanto da mãe da gente.
- Pois acredite. E olhe, vou lhe contar um segredo: nós gostamos mais da mãe de vocês do que da nossa.
- É mesmo? E por que assim?
- Porque a nossa não deixa lucro. Pelo contrário. Todo ano no dia das mães sou obrigado a desfalcar a loja para presenteá-la.
- Ainda bem que só é um dia, hein? Se fosse, digamos um trimestre das mães, vocês estariam na maior miséria. O senhor dá presentes caros a sua mãe?
- Bem, pra falar a verdade, tem uns dez anos que eu não dou presente pra ela no dia das mães.
- E ela não reclama?
- Reclamava, até o dia que lhe disse que o dia das mães que era jogada comercial e que para mim o dia dela era todos os dias.
- Também acho.
- Não. Você não pode achar – esbravejou o dono da loja -, eu posso porque sou comerciante. Você não, você é consumidor. Tem que comprar um presente pra ela no dia das mães.
- Bem, já que é assim, então vamos ver o presente.
- Ótimo, assim é que se fala. Você tinha me dito que gostava de sua mãe, não é verdade? Gosta muito?
- Muito. Por quê?
- Porque nós temos aqui presentes para todos os gostos. Para quem gosta muito, para quem gosta pouco, para quem ainda está em dúvida.
- E o senhor dá desconto para quem gosta muito?
- Não. Nós só damos descontos para quem tiver mais de uma mãe. Fazemos, porém, um preço especial para juiz de futebol, que tem a mãe muito sacrificada. O senhor é juiz de futebol?
- Não. Sou bandeirinha – mentiu Juvenal.
- O senhor já foi xingado em campo alguma vez?
- Umas três.
- É pouco, só damos descontos para bandeirinhas que tenham sido xingados mais de cinco vezes. Vamos ver os presentes? Pra escolhermos o tipo de presente mais adequado eu preciso saber como é sua mãe.
- Mamãe? É uma mãe igual a qualquer outra. Não tem nada de especial. Ou melhor, de especial só tem o filho.
- Vejamos. Quando o senhor era garoto ela costumava dizer: “Saia agasalhado meu filho”, “não vá comer agora que o jantar já vai pra mesa”, “não ande no ladrilho descalço”, “não abra a geladeira sem camisa”, “não se esfalfe”, “não chegue tarde”, “não apanhe chuva”, costumava? Costumava dizer que o senhor estava comendo pouco e lhe entulhava de remédios?
- Exatamente – surpreendeu-se Juvenal -, parece até que o senhor foi filho da minha mãe.
- Ou o senhor foi filho da minha. Se ela era realmente assim, o melhor presente é esta TV em cores.
- Mas é o artigo mais caro que tem na loja. Não posso da aquela que é mais barata?
- Que é isso, meu senhor? Sua mãe merece o melhor.
- Mas eu não tenho dinheiro. Não posso dar o melhor.
- Que absurdo – indignou-se o comerciante -, se o senhor não pode dar o melhor para sua mãe vai dar a quem? Será que sua mãe não merece um sacrificiozinho de sua parte?
- Claro. Claro que merece.
- E, então? Pense nos sacrifícios que ela já fez pelo senhor.
- Estou pensando.
- Então pense que eu espero. Ela fez muitos?
- Muitos o quê?
- Sacrifícios.
- Não estou pensando nos sacrifícios. Estou pensando no preço.
Juvenal perguntou se podia ver outros artigos, talvez encontrasse algo mais em conta. “Posso mexer nas mercadorias da loja?”
- Lógico – disse o comerciante – esteja à vontade. Pode remexer o quanto quiser. Aqui vale tudo. Só não vale xingar a mãe.
Juvenal saiu percorrendo a loja, com o comerciante atrás, matraqueando no seu ouvido sua técnica de vendedor: “O senhor sabe o que é ser mãe? Ser mãe como dizia Coelho Neto, é andar chorando num sorriso/ ser mãe é ter um mundo e não ter nada/ ser mãe é padecer num paraíso/ ser mãe é ter filho que lhe compre uma TV em cores ou um ar-condicionado ou uma geladeira, um secador de cabelos, uma cinta, um jogo de estofados, uma mobília de quarto...”
- Mobília de quarto?
- E por que não? Armário, penteadeira, mesinha de cabeceira de cama.
[...]
- Já resolvi – respondeu Juvenal decidido.
– Não vou dar nada.
- O quê? – vociferou o comerciante. – O senhor não vai dar nada para aquela que lhe deu tudo?
- Vou lhe dar um beijo.
- Um beijo? O senhor tem coragem? O senhor é realmente um filho desnaturado. Em pleno século XX, em plena sociedade de consumo, o senhor vai chegar em casa de sua mãe e com a maior cara de pau lhe dar um beijo? Um beijo? Que espécie de filho é o senhor? Um beijo?
- Bem, talvez dois ou três.
- Então leve ao menos esta pasta de dentes aqui. Contém genitol e mantém o hálito puro na hora de beijar sua mãe.

domingo, 5 de dezembro de 2010

PATOTA





Patota toca
patota canta
patota dança
patota traça

patota é tudo de bom
e patati patata

patota é cheia de graça
pena que patota passa...

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...