quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

QUANDO EU ERA INVISÍVEL - Luis Fernando Veríssimo

Quando eu descobri que podia ficar invisível tinha 13 anos e a primeira coisa que fiz foi entrar no vestiário das mulheres, no clube. Durante algum tempo só usei meu poder para coisas assim. Ver mulher pelada, mudar as coisas de lugar para assustar as pessoas, dizer coisas no ouvido delas quando elas pensavam que estavam sozinhas, ficar atrás do goleiro do meu time para chutar as bolas que ele deixava passar e evitar o gol, coisas assim. Muito jogo importante da época fui eu que decidi, defendendo em cima da linha, e ninguém ficou sabendo, ou pelo menos ninguém acreditou quando eu contei. Também entrava em cinemas sem pagar e ainda cutucava a barriga do porteiro, só por farra. Vi todos os filmes proibidos até 18 anos que ninguém mais da minha geração viu. O único perigo, nos cinemas, era alguém, vendo a minha poltrona vazia, sentar no meu colo. Como eu invariavelmente estava com uma ereção, havia sempre a possibilidade de uma catástrofe.


Aos 16 anos me apaixonei por uma menina de 15, a Beloní, e um dia fiquei invisível e a segui até a sua casa. Queria ver como era o seu quarto e a sua vida, queria vê-la tomando banho, mas não queria ver o que vi, uma briga feia dela com a mãe, depois ela trancada no quarto, chorando, eu sem saber se afagava sua cabeça e a matava de susto ou o quê. No fim quase fiquei preso no apartamento porque todos foram dormir e trancaram as portas, tive que simular batidas na porta da frente para o pai da Beloní vir abrir e me deixar escapar, depois tive que explicar em casa porque ficara na rua até aquela hora, só quando já estava na cama me dei conta que perdera a viagem porque a Beloní, de tão amargurada, nem tomara banho e dormira vestida. Voltei à casa dela no dia seguinte, atraído não apenas pela possibilidade de vê-la nua como a de, de alguma forma, interferir no seu drama doméstico, ajudá-la, mudar seu destino, em último caso empurrar sua mãe pela janela. Desta vez peguei uma briga da mãe com o pai da Beloní. Fiquei achatado contra uma parede, apavorado. Era terrível, como as pessoas se comportavam quando achavam que não estavam sendo observadas. E era terrível não poder fazer nada. Era terrível ser invisível, ter aquele poder e nenhum outro. Eu não podia mudar a vida da minha amada Beloní como podia mudar o resultado de um jogo. Podia andar pela sua casa sem ser visto e sentir o cheiro doce de sua nuca, tendo apenas o cuidado de não encostar o nariz, mas não podia salvá-la.


Acho que foi então que me convenci de que a invisibilidade era, na verdade, um poder trágico. Depois da minha imersão na vida privada da família da Beloní - que eu revi o outro dia e e me contou que está bem, que se casou com um astrônomo belga que tem até uma estrela com o nome dele, que ela não se lembrava como era, está claro que enlouqueceu - nunca mais consegui me divertir com a minha invisibilidade. Não entro mais em vestiários femininos, pois que graça há na mulher nua se ela não está nua para você, se ela nem sabe que você a está vendo e que aquele hálito na sua nuca é o seu? Não entro mais em campo, pois que graça há no seu time ganhar com a sua participação anti-regulamentar e sem que você ganhe sequer uma medalha, uma linha no jornal? E já tenho idade suficiente, mais do que suficiente, para entrar em filmes proibidos à vista do porteiro. Pensando bem, hoje só fico invisível quando quero estar sozinho ou, vez que outra, quando estou dirigindo, para ver as caras de espanto dos outros motoristas. Mas nem isso me diverte mais. A invisibilidade é para os jovens.


Troquei meu poder pelo ofício de Flaubert que dizia que todo escritor é um fantasma percorrendo as suas próprias entrelinhas, ou coisa parecida. Abandonei a vida real por ficções como esta, em que controlo tudo e posso mudar a vida das pessoas e dispor do seu destino, e fornecer os seus diálogos, e matá-las ou salvá-las como me apetecer. E em que apareço e desapareço quando quero. E posso não só sentir o cheiro doce da nuca das mulheres que invento como roçar nelas o meu nariz. E até fazer "Nham!", se quiser, sem qualquer perigo.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

DORME, PRETINHO - Sérgio Caparelli





Dorme, dorme, meu menino
a lua é feita de néon.

Vá embora, vá seu guarda,
deixa o pretinho dormir,
ele está longe de casa
e não tem pra onde ir.

Vá embora, vá seu guarda,
deixe o pretinho dormir.

Dorme, dorme, meu pretinho
Deus também é engraxate,
ele lustra no teu peito
um coração que bate, bate.

Dorme, dorme, meu pretinho,
Deus também é engraxate.

Dorme, dorme, meu pretinho,
numa cama de jornal,
logo vão chover estrelas
para acabar com o teu mal.

Dorme, dorme, meu pretinho,
numa cama de jornal.

Vá embora, vá seu guarda,
o pretinho é muito bom:
Ele dorme sob a lua
de um anúncio de néon.


Do livro Boi da cara preta.

domingo, 28 de novembro de 2010

RETORNO

Anos depois
ela bate à porta
para reivindicar seu lugar
no meu álbum de lembranças.

Minha racionalidade pondera
               com regras e dever
                 afirma sem piscar
     que seu amor prescreveu.

              O pior é que o tempo
não é confiável nem comparsa
            me chama de medroso
      enquanto ri da minha cara!

Ele diz que depois que ela se foi
           esqueci portas trancadas
       alarmes cadeados sensores
                            me guardam...
                                e aguardam
                   um gesto definitivo...

             Tudo o que aprendi
foi mastigar essas verdades
                             amargas
torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  apontem as coordenadas.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que teu pai faz melhor do que o meu? - Ignácio de Loyola Brandão



Ainda não existiam coisas como o "dia dos pais". Todo dia era dia do pai, porque todos os dias tínhamos que nos entender com ele quando chegava do trabalho e a mãe desfiava o rosário de aflições que tínhamos causado: não obedeceu, não fez a lição de casa, fugiu da escola no recreio, brigou com um vizinho, quebrou um vidro com a bola, chupou manga verde, comeu melancia e tomou leite (proibidérrimo), jogou barro na roupa lavada.
Os pais eram sérios, austeros, distantes, carrancudos, temíveis, não conversavam com a gente sobre nenhum assunto, não acariciavam o filho. Vivíamos vidas em separado. Em casa, uma coisa. Na rua, outra. Porque só se brincava na rua.
No entanto, admirávamos aqueles homens, tanto que as disputas eram acirradas. Cada um exibia o pai mais do que o outro. Eu ficava abismado. Como é que aqueles pais eram tão campeões e a gente nem ouvia falar deles no bairro? E olhem que Araraquara era uma cidade pequena, todos se conheciam.
Betão, filho do bananeiro, assegurava, toda segunda-feira: "Ontem, meu pai defendeu 10 bolas impossíveis, o time dele ganhou. Com meu pai no gol, não tem time que ganhe dele". Nunca o jogo era em Araraquara. O lélio Gordo não deixava por menos: "Na luta de sábado, meu pai acertou duas muquetas no Kid Formiga, no primeiro rounde e acabou". O pai desse também só lutava box em outras cidades. Nerevaldo Milho (todos tinham um apelido) garantia que o pai era capaz de ir de bicicleta até São Paulo e voltar no dia seguinte. O pai dele alugava e consertava bicicletas, era uma inveja, um dia apareceu em uma Monark de breque no pedal, foi um deslumbramento.O pai do Sálvio Prego podia comer quarenta sanduíches de queijo quente com banana, apesar de magro, magro.
Carlos Amargo não ficava atrás: "Meu pai vendeu trezentos números de peru na quermesse, ele é batuta como vendedor, espertíssimo, ninguém vende mais do que ele, é capaz de vender sorvete para pinguim, diz minha mãe". Eu ficava assombrado. "Pinguim toma sorvete?" Todos riam:
- Bobo, é maneira de dizer. Igual a vender ovo para galinha, pernil para o porco, leite para  a vaca. Falando nisso, o seu pai é capaz de quê?
Meu pai, meu pai? Nunca tinha esmurrado ninguém. Em um jogo, tinha pisado na bola tantas vezes que foi expulso do time. Era mais fácil ele andar na corda bamba que de bicicleta. Na quermesse, comprava rifas, não ganhava nada, minha mãe reclamava: "Você é um azarado".Mesmo assim, era um homem diferente, legal.
Em casa, perguntei:
- Pai, o senhor é capaz do quê?
- Do quê? Não entendo.
Expliquei, mostrei como cada pai dos meus amigos era batuta, fazia coisas incríveis.
- O que digo sobre você?
- Que sou capaz de trabalhar o dia inteiro, sábado e domingo, sem fins de semana e sem tirar férias!
- Isso não é vantagem pra contar. Tem que ser uma coisa grande!
- Sei... sei viver...
Bem que minha mãe dizia que meu pai tinha respostas estranhas.
- Viver todos sabem.
- Todos vivem! Não sabem. Vivem do jeito que pensam que os outros acham que é bonito viver, mas não do jeito que eles gostariam de viver. Deu para entender?
- Quer dizer que o Betão gostaria que o pai dele fosse goleiro bom, que o Nerevaldo gostaria que o pai fosse para São Paulo de bicicleta?
- Mais ou menos. A gente não precisa fazer coisas espetaculares. Não precisa ser campeão, filho.
- Mas os outros não vão gostar dessa resposta, pai. Eu queria poder dizer uma coisa que deixasse os outros com inveja.
- Para que deixar os outros com inveja? O que importa é: você está contente com o pai que tem? Com o que seu pai sabe fazer? Por exemplo, eles sabem viajar sem sair do lugar?
- Essa não!
- A quantos lugares não vamos? Não voamos de avião, andamos de trem, saímos em tapetes voadores, visitamos castelos, estivemos na lua, criamos um foguete interplanetário, um telefone para macacos, fizemos surf nas costas dos crocodilos, jogamos basquete contra o time dos americanos, conversamos com chineses, salvamos uma mulher dos bandidos, descansamos nas nuvens, abrimos a porta do inferno para as pessoas escaparem?
- Pai, tudo eram histórias que você contava!
- Diga a eles que ninguém inventa como eu.
- Não posso! Tem que ser uma coisa que deixe a turma de queixo caído.
Ele me olhou e pareceu um pouco triste.Coisa difícil ver meu pai triste. Poucas vezes vi. Mesmo quando ele estava doente e ia trabalhar de manhã, nunca faltou no trabalho. Demorou um pouco, abriu o sorriso e o mundo mudou. E ao ver aquilo, entendi. Corri para a beira do rio. A turma estava lá. Gritei:
- Meu pai faz uma coisa incrível que nenhum dos seus faz!
- E o que é essa maravilha?
- O meu pai ri. Vive sorrindo. É engraçado! Divertido. Inventa como ninguém. Ganhei ou não?
Eles me olharam com cara de derrotados.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Autoapresentação - Elias José




Sou o poeta João,
cheio de sonhos e pesadelos
e medos e coragem.

Tenho os olhos abertos, espertos
para olhar o céu, o mar, a montanha
e todas as cores que a vida tem.
Tantos me tocam as cores da natureza
como os olhos das garotas.


Tenho os ouvidos atentos
para a música, os ruídos todos
e a sonoridade dos sorrisos
e dos nomes de mulher.


Com os íntimos ou escrevendo
sou falante, elétrico como um grilo.
Quando enfrento o desconhecido
sou caracol encolhido em minha casca-casa.


Sou alegre e sou triste,
sou poeta em projeto.
Acho que o poeta é um cara-de-pau
que se joga todo sem redes,
sem máscaras e sem olhos escuros.
É um ser que bota fogo no gelo
e espera um incêndio amazônico.
Para isso vivo e me preparo...
Como só tenho quinze anos,
estou ainda atiçando chispas.
Se uma chamazinha explodir,
se um verde minúsculo brotar
do azul do meu poema,
se o diálogo quebrar a indiferença,
valeu.

 do livro Cantigas de adolescer.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...