domingo, 28 de novembro de 2010

RETORNO

Anos depois
ela bate à porta
para reivindicar seu lugar
no meu álbum de lembranças.

Minha racionalidade pondera
               com regras e dever
                 afirma sem piscar
     que seu amor prescreveu.

              O pior é que o tempo
não é confiável nem comparsa
            me chama de medroso
      enquanto ri da minha cara!

Ele diz que depois que ela se foi
           esqueci portas trancadas
       alarmes cadeados sensores
                            me guardam...
                                e aguardam
                   um gesto definitivo...

             Tudo o que aprendi
foi mastigar essas verdades
                             amargas
torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  apontem as coordenadas.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que teu pai faz melhor do que o meu? - Ignácio de Loyola Brandão



Ainda não existiam coisas como o "dia dos pais". Todo dia era dia do pai, porque todos os dias tínhamos que nos entender com ele quando chegava do trabalho e a mãe desfiava o rosário de aflições que tínhamos causado: não obedeceu, não fez a lição de casa, fugiu da escola no recreio, brigou com um vizinho, quebrou um vidro com a bola, chupou manga verde, comeu melancia e tomou leite (proibidérrimo), jogou barro na roupa lavada.
Os pais eram sérios, austeros, distantes, carrancudos, temíveis, não conversavam com a gente sobre nenhum assunto, não acariciavam o filho. Vivíamos vidas em separado. Em casa, uma coisa. Na rua, outra. Porque só se brincava na rua.
No entanto, admirávamos aqueles homens, tanto que as disputas eram acirradas. Cada um exibia o pai mais do que o outro. Eu ficava abismado. Como é que aqueles pais eram tão campeões e a gente nem ouvia falar deles no bairro? E olhem que Araraquara era uma cidade pequena, todos se conheciam.
Betão, filho do bananeiro, assegurava, toda segunda-feira: "Ontem, meu pai defendeu 10 bolas impossíveis, o time dele ganhou. Com meu pai no gol, não tem time que ganhe dele". Nunca o jogo era em Araraquara. O lélio Gordo não deixava por menos: "Na luta de sábado, meu pai acertou duas muquetas no Kid Formiga, no primeiro rounde e acabou". O pai desse também só lutava box em outras cidades. Nerevaldo Milho (todos tinham um apelido) garantia que o pai era capaz de ir de bicicleta até São Paulo e voltar no dia seguinte. O pai dele alugava e consertava bicicletas, era uma inveja, um dia apareceu em uma Monark de breque no pedal, foi um deslumbramento.O pai do Sálvio Prego podia comer quarenta sanduíches de queijo quente com banana, apesar de magro, magro.
Carlos Amargo não ficava atrás: "Meu pai vendeu trezentos números de peru na quermesse, ele é batuta como vendedor, espertíssimo, ninguém vende mais do que ele, é capaz de vender sorvete para pinguim, diz minha mãe". Eu ficava assombrado. "Pinguim toma sorvete?" Todos riam:
- Bobo, é maneira de dizer. Igual a vender ovo para galinha, pernil para o porco, leite para  a vaca. Falando nisso, o seu pai é capaz de quê?
Meu pai, meu pai? Nunca tinha esmurrado ninguém. Em um jogo, tinha pisado na bola tantas vezes que foi expulso do time. Era mais fácil ele andar na corda bamba que de bicicleta. Na quermesse, comprava rifas, não ganhava nada, minha mãe reclamava: "Você é um azarado".Mesmo assim, era um homem diferente, legal.
Em casa, perguntei:
- Pai, o senhor é capaz do quê?
- Do quê? Não entendo.
Expliquei, mostrei como cada pai dos meus amigos era batuta, fazia coisas incríveis.
- O que digo sobre você?
- Que sou capaz de trabalhar o dia inteiro, sábado e domingo, sem fins de semana e sem tirar férias!
- Isso não é vantagem pra contar. Tem que ser uma coisa grande!
- Sei... sei viver...
Bem que minha mãe dizia que meu pai tinha respostas estranhas.
- Viver todos sabem.
- Todos vivem! Não sabem. Vivem do jeito que pensam que os outros acham que é bonito viver, mas não do jeito que eles gostariam de viver. Deu para entender?
- Quer dizer que o Betão gostaria que o pai dele fosse goleiro bom, que o Nerevaldo gostaria que o pai fosse para São Paulo de bicicleta?
- Mais ou menos. A gente não precisa fazer coisas espetaculares. Não precisa ser campeão, filho.
- Mas os outros não vão gostar dessa resposta, pai. Eu queria poder dizer uma coisa que deixasse os outros com inveja.
- Para que deixar os outros com inveja? O que importa é: você está contente com o pai que tem? Com o que seu pai sabe fazer? Por exemplo, eles sabem viajar sem sair do lugar?
- Essa não!
- A quantos lugares não vamos? Não voamos de avião, andamos de trem, saímos em tapetes voadores, visitamos castelos, estivemos na lua, criamos um foguete interplanetário, um telefone para macacos, fizemos surf nas costas dos crocodilos, jogamos basquete contra o time dos americanos, conversamos com chineses, salvamos uma mulher dos bandidos, descansamos nas nuvens, abrimos a porta do inferno para as pessoas escaparem?
- Pai, tudo eram histórias que você contava!
- Diga a eles que ninguém inventa como eu.
- Não posso! Tem que ser uma coisa que deixe a turma de queixo caído.
Ele me olhou e pareceu um pouco triste.Coisa difícil ver meu pai triste. Poucas vezes vi. Mesmo quando ele estava doente e ia trabalhar de manhã, nunca faltou no trabalho. Demorou um pouco, abriu o sorriso e o mundo mudou. E ao ver aquilo, entendi. Corri para a beira do rio. A turma estava lá. Gritei:
- Meu pai faz uma coisa incrível que nenhum dos seus faz!
- E o que é essa maravilha?
- O meu pai ri. Vive sorrindo. É engraçado! Divertido. Inventa como ninguém. Ganhei ou não?
Eles me olharam com cara de derrotados.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Autoapresentação - Elias José




Sou o poeta João,
cheio de sonhos e pesadelos
e medos e coragem.

Tenho os olhos abertos, espertos
para olhar o céu, o mar, a montanha
e todas as cores que a vida tem.
Tantos me tocam as cores da natureza
como os olhos das garotas.


Tenho os ouvidos atentos
para a música, os ruídos todos
e a sonoridade dos sorrisos
e dos nomes de mulher.


Com os íntimos ou escrevendo
sou falante, elétrico como um grilo.
Quando enfrento o desconhecido
sou caracol encolhido em minha casca-casa.


Sou alegre e sou triste,
sou poeta em projeto.
Acho que o poeta é um cara-de-pau
que se joga todo sem redes,
sem máscaras e sem olhos escuros.
É um ser que bota fogo no gelo
e espera um incêndio amazônico.
Para isso vivo e me preparo...
Como só tenho quinze anos,
estou ainda atiçando chispas.
Se uma chamazinha explodir,
se um verde minúsculo brotar
do azul do meu poema,
se o diálogo quebrar a indiferença,
valeu.

 do livro Cantigas de adolescer.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Panis et circensis - Caetano Veloso e Gilberto Gil





Eu quis cantar, minha canção iluminada de sol
soltei os panos sobre os mastros no ar
soltei os tigres e os leões nos quintais
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer, de puro aço luminoso punhal
para matar o meu amor e matei
às cinco horas na Avenida Central
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

Mandei plantar, folhas de sonho no jardim do solar
as folhas sabem procurar pelo sol
e as raízes procurar, procurar
mas as pessoas na sala de jantar
essas pessoas na sala de jantar
são as pessoas na sala de jantar
mas as pessoas na sala de jantar
são ocupadas em nascer e morrer

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A CABEÇA DOS SONHOS E DOS OUTROS

Meus sonhos vivem bem informados
com tudo o que se passa
com parentes, amigos e conhecidos.

Quando se trata de mim
usam subterfúgios
falam através de enigmas
para me deixar confuso.

Meus sonhos são delicados
não querem abrir o jogo
para não me fazer sofrer.
E essa confusão toda
me faz pensar neles
por um bocado de tempo,
ao acordar pela manhã.

Pretensiosos,
eles tudo sabem
sobre tudo,
do amor eterno
ao amor verdadeiro...

É que eles não têm compromisso com o tempo,
que me enrola o tempo todo.
Abusados, meus sonhos riem dos amores
que encontro pelo caminho,
frágeis e passageiros.

Meus sonhos vivem fazendo acordos
com pessoas que me rodeiam e que convivo.
Fui sequestrado por meus sonhos, que anarquizam
minha cabeça, e a cabeça dos outros...



"...Somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.


Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.


O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.


A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.


Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos".

(Martha Medeiros, Zero Hora de 17/11/2010).

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...