quinta-feira, 23 de setembro de 2010

OS ESTATUTOS DO HOMEM - Thiago de Mello


Foto - Sebastião Salgado


Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.


Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.


Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.


Artigo IV

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.


Parágrafo único:

O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.


Artigo V

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.


Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.


Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.


Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.


Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.


Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.


Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.


Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.


Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.


Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.


Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
(Ato Institucional Permanente) - a Carlos Heitor Cony

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Um dia em sala de aula - Fernando Sabino

Magricela como Olívia Palito, mulher do Popeye, parecia um galho seco dentro do vestido escuro. Era antipática e ranzinza. Usava óculos de lentes grossas: não enxergava direito, vivia confundindo um aluno a outro.

A aula de religião não contava ponto nem influía na nossa média, mas a diretora nos obrigava a frequentar.
Um dia apareceu uma barata na sala de aula. Descobrimos então que Dona Risoleta tinha horror a baratas: soltou um grito, apontou a bichinha com o dedo trêmulo e subiu na cadeira, pedindo que matássemos. Era uma barata grande,daquelas cascudas.

A classe inteira se mobilizou para matá-la. Foi aquele alvoroço: empurrões,cotoveladas,pontapés, risos e gritaria, todos querendo atingi-la primeiro. E a coitada, feito barata tonta, escapando no chão. Até que, de repente, tive a sorte de dar com ela passando a correr entre meus pés - e esmigalhei-a em uma pisada só.


Fui aclamado como herói, vejam só: herói por ter matado uma barata. Até Dona Risoleta me agradeceu trêmula, descendo da cadeira e me dando um beijo na testa. Esse beijo a turma não me perdoou,durante muito tempo fui vítima da maior gozação: diziam que dona Risoleta estava querendo me namorar.

Deste episódio nasceu uma brincadeira que passamos a fazer em toda aula de religião, duas vezes por semana. Alguém trazia uma barata viva dentro de uma caixa de fósforos vazia, para soltar na sala de aula entre as carteiras, até que um aluno denunciasse a sua presença. Quando não era a dona Risoleta que soltava um gritinho:

- Uma barata!

Um dia ela foi reclamar providências da diretora, dizendo que o prédio era velho, estava precisando de uma limpeza em regra, vivia cheio de baratas. Naquele tempo não havia dedetização,de modo que a diretora não tomou providência nenhuma, nunca tinha visto barata na escola. Aquilo eram fricotes de Dona Risoleta.

E a coisa ficou por isso mesmo, de vez em quando aparecendo uma baratinha, para alegrar a aula de religião. Houve uma que subiu pela perna da professora e foi se esconder debaixo da sua roupa. A mulher deu um pulo de três metros de altura se sacudindo toda, aos berros, como se estivesse louca, por pouco não se atirou pela janela.

Até que o Dico um dia esqueceu na carteira uma caixa de fósforos com a barata dentro. Sem saber para que diabo aquele aluno havia de ter trazido fósforos de casa, se todos nós éramos crianças, não fumávamos, dona Risoleta, curiosa, abriu a caixa. A barata saltou em sua cara num vôo aflito, largando pedaços de asas no ar, e se refugiou nos seus cabelos. A coitada só faltou desmaiar de susto. Saiu correndo feito doida com barata e tudo e foi nos denunciar à diretora.

O Dico acabou suspenso por uma semana, como responsável por todas as baratas que já tinham aparecido. Com isso, ficou sob ameaça de perder o ano, por falta de frequência.

Do livro O Menino no espelho.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Procriação


Todo mundo procria.
                        cachorro
                                 gato     
                                 burro
                                  cavalo
                                       gente
                                         cutia...

                  Ah, e o coelho procria
                     como num avatar...

                  Todo mundo procria
                  menos parteira Sofia
                   que ajudava a criar.

sábado, 18 de setembro de 2010

DIÁRIO




Jogo todas as fichas no diário.
É mais um porto seguro
âncora do meu navio.

Trago milhões
de esperanças
que vão acalmar
o mar bravio.

Quando despontar
“terra à vista!”
olharemos para trás
e para frente
descobriremos que a alegria
é irmã da fé e da dor
e em todo o horizonte
poderemos semear
o amor!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

TUITANDO

As novas ferramentas virtuais estão aí. Dizem que vieram pra ficar - sei, este é um "baita" lugar-comum...

Além do blog, dizem-me para não esquecer do twitter. Nele, as mensagens não podem ultrapassar os 140 caracteres.

Um poeta gaúcho, Fabrício Carpinejar, já publicou um livro que resultou de suas frases no twitter - que podem ser chamados de ideogramas, ou aforismos.

Literatura assim tão condensada é tema de controvérsias. Uns são a favou, outros contra. Pelo que andei lendo, mensagens de 140 caracteres são um ótimo exercício para o escritor. Obriga-o a cortar, em seu texto, tudo aquilo que é "desnecessário", deixando apenas o essencial. E sabemos que isso não é fácil.

Ontem pensei tanto nisso, e também na possibilidade de, em breve, ter um twitter...

Então sonhei... Com uma frase, que não sei como chamar... É minha primeira "tuitada".

Essa frase, ou aforismo, está escrita aqui como me veio no sonho. Não foi alterada nenhuma palavra. Não sei se isso se pode chamar de literatura surreal. Vou transcrevê-la abaixo, enquanto aguardo outros sonhos desse tipo - não esquecendo, claro, de um papel e de uma caneta ao lado da cama.


Em vez de julgar, deu-lhe de comer a primeira maça do rosto.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...