quinta-feira, 9 de setembro de 2010

UM ANTRO DE ASSASSINOS - Leo Cunha


Quatro anos de idade, olhos inquietos, fita azul no cabelo, a menina espia toda a sala para garantir que ninguém está escutando. Depois fala quase sussurrando:
- Hoje você não me ponha os pés fora dessa casa, ouviu bem?
E balança o travesseiro de penas, que, fazendo as vezes de bebê, responde:
- Por quê, mamãe?
- Por que não! Pronto e acabou! - a garota ralha com o travesseiro.
- Mas eu queria brincar lá na rua...
A menina sacode o travesseiro no ar:
- Não discuta comigo! Quer ficar sem sobremesa?
O bebê não quer.
- Sorte sua, filhinho. Hoje tem... tem... hoje tem cocada.
Lambe os beiços pensando na cocada, quando, de repente, escuta um barulho do lado de fora. Acha que alguém vai entrar pela porta, finge que o bebê é um travesseiro e deita  a cabeça, com muito cuidado.
Não era ninguém. A menina se empina de novo e desamarrota o bebê.
- Se você prometer que não vai falar pra ninguém, eu te conto um segredo...
O bebê promete.
- Sabe por que eu não deixo você sair? É que essa cidade aqui é muito perigosa. Eu vi na televisão um moço falando que essa cidade é um antro de assassinos... Imagina, filhinho, um antro!
O bebê sacode de medo.
- Pois é... - a menina sussurra. - Até eu, que sou velha, que sou sua mãe, até eu fico com medo de sair pra rua. Mas o que é que a gente pode fazer, né? O papai tem que trabalhar aqui.
Olha de novo ao redor e abraça apertado o filhinho.
- Mas não fica com medo, não. Se a gente ficar em casa, bem comportada, não vai ter problema nenhum. O papai não ia trazer a gente pra essa cidade se fosse tão perigoso assim. Vai ver o moço da TV exagerou um pouco.
O sono vai batendo, o bebê vai virando travesseiro de novo, a menina já está quase dormindo.
- Sabe, filho, eu só queria mesmo era saber uma coisa: o que será que quer dizer "um antro"?...


Do livro Tela plana, editora Planeta.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

POR QUE FUJO


Não me pergunte por que fujo. Não salpique respostas. Faço-o, simplesmente. Tornou-se acontecimento normal, que resguardo de qualquer autocrítica.

Afastar-se dos laços costumeiros e inquestionáveis, como tomar um banho frio por alguns dias. Fugir para dizer que não quero depender de amarras e de currais.

Não me pergunte “Desde quando você age assim?”
Só sei que sofro e me sinto bem. Nem adianta você dizer “Você é doido, sabia?”.

Fugir é um estilo de vida. Rejuvenesce a alegria e a tristeza.
Estou viciado em fugir. Tem seus ápices, delírios, e depois a melancolia baixa e cobre tudo, como neblina.

De que maneira passou a fazer parte de minha vida, não sei.

Devo estar exausto de tua voz. Das curvas de teu corpo. Perderam-se os labirintos, foi-se o mistério. Restou “Deve-me obrigação e respeito!”.

Compreendo as convenções sociais, mas fugir dá um prazer bucólico, que não quero compartilhar. É meu segredo. Minha caixa preta.Tua mesmidade cotidiana não preenche as lacunas da solidão.

Aí você diz “Eu me esforço, sabia?”.

Entendo, embora seja um engodo perseguir a paixão, deixada por teu vácuo, nas noites acesas de encontros embriagados, lá onde teu lamento estonteou-se na contramão.

Investiga-se a caixa preta e descobre-se que não me vês da maneira como te vejo. Traduzo-te numa linguagem sensual. A língua e a cama, com símbolos infinitos, numa linha pontilhada de sinais extraviados pela asneira do dia-a-dia.

Frases decoradas, gramática inútil, no fundo de tua boca.

Você me vê como “O homem da minha vida,” “O único que amei...” Mas essas etiquetas usuais não me convencem. Não são alavancas suficientes para me fazer rastejar montanha abaixo.

Sabes que não te vejo assim. E é por que te vejo diferente que necessito fugir.

Sei entortar as grades, pular o muro. Sou expert nos detalhes, que planejo no horário de visita, quando a truculenta insônia vem dar “Oi!”.

domingo, 5 de setembro de 2010

AUTO-RETRATO


Meus braços ficaram curtos
e não abrigam mais
todo mundo.

Meus lábios
queriam beijar
agora encolheram
até desaparecerem.


Meu peito está rouco
e fez o coração gigante
acordar e fugir
num instante.


Muitas coisas boas da vida
ficaram ranzinzas
roubaram as cores mais vivas
e a roupa que eu visto
agora está cinza.


Minha cara colorida
quis sempre alegrar
mas nesse momento
virou chacota e espanto.


Meus olhos
lanternas gigantes
apagaram-se de pronto
e esconderam meu rosto.


Tudo o que sei é que sou
super-herói.

Mas os que não
aprenderam a amar
me convenceram que sou
esquisito monstro
envergonhado de estar
pendurado e exposto.

Para o bem ou para o mal
estarei em algum lugar...

Afinal, quem eu sou,
e onde vou me encontrar?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

PRECIOSA - o filme


Vi o filme nesta semana, com meus alunos de primeiro ano de Ensino Médio. Adolescentes de 14, 15 anos. O filme tornou-se conhecido por ter sido premiado pela Academia. Mas foi o texto da martha Medeiros (que segue abaixo) que me despertou a curiosidade, e me levou a ver o filme.
Ao contrário de nossa cronista, eu não havia lido o livro. Vi o filme primeiro. Ele é pesado, chocante. 
Durante sua exibição, reparava na reação de meus alunos, tentando associar o contexto do filme com o contexto da vida deles e das escolas  de Ensino Básico.
Até que ponto nossos adolescentes se sentirão sensibilizados com os dramas da personagem "Preciosa"?
Aos 16 anos, não sabia ler nem escrever. Negra, estuprada pelo pai - tendo dois filhos com ele. O pai morre de AIDS e deixa-lhe a doença como herança.
O que ela pode esperar da vida, se nunca se deparou com o amor?
Gostaria de passar para meus alunos a perspectiva de que, mesmo diante de uma realidade muitas vezes adversa, o melhor é não deixar de lutar, de ir em frente, pois é possível (mesmo que as previsões digam o contrário) nos depararmos com com coisas e pessoas bastante preciosas...


EM MEMÓRIA DE JOSÉ MINDLIN - Martha Medeiros

Ainda não vi o filme Preciosa, que concorreu ao Oscar, mas li o livro e só não o hiperfestejo porque implico um pouco com textos escritos propositadamente errados – narrado na primeira pessoa, a personagem é analfabeta e é “nóis fumo” e “lavei os prato” da primeira a última página, mas entendo que sem esse naturalismo o relato soaria inverossímel e a reação à leitura não teria o mesmo impacto. Preciosa dói. E quando o livro acaba, a gente mais uma vez se conscientiza de que não precisaria doer.


Educação segue sendo a melhor terapia para a saúde mental de uma pessoa. A personagem do livro engravidou do próprio pai aos 12 anos, é abusada também pela mãe, e aos 16 está grávida de novo, do pai de novo. Só o que conhece da vida é isso: abuso e violência. Nunca ouviu uma única palavra doce em sua brutal adolescência. É feia, gorda, pobre, negra e sem estudo. Um personagem como os que existem às pencas no Brasil, ainda que Clareece Precious Jones, a Preciosa, seja americana – o que não torna sua desgraça menor.


Pra cada um de nós foi designado um anjo. Cabe a nós reconhecê-lo e permitir que ele nos ajude. O anjo de muitos brasileiros foi José Mindlin, nosso mais conhecido bibliófilo e incentivador da cultura, que faleceu semanas atrás, aos 95 anos. O anjo de Precious foi uma professora sem medo de desafios. A história não acaba com Precious ganhando o prêmio Nobel de Literatura, mas mostra a porta, a única porta, pela qual todos devem passar caso queiram ser alguém.


O tocante da narrativa é ver uma menina começar a ter acesso a algo absolutamente mágico: a união de duas letras, três letras, quatro letras, e isso se transformar numa palavra, e essa palavra dar sentido ao que ela não sabia até então como identificar. E então perceber os direitos que lhe roubaram na infância e desejar voltar no tempo pra experimentar a vida como ela deveria ter sido. Só que ninguém pode voltar para onde nunca esteve. Ela terá que carregar para sempre o massacre que sofreu por ter dois brutamontes ignorantes como pais e tentar transformar essa chance de crescer, que está recebendo, em um futuro minimamente decente. É possível?


Se através da autovalorização não for possível, então de nenhum outro jeito será.


Imagino o desespero de alguém que deseja retornar ao ponto de partida, recriar suas experiências, vivenciar o que lhe foi sonegado, mas que não pode. Porém, um dia a gente acorda, os livros nos acordam, um anjo nos acorda, e somos avisados: não adianta mais olhar para trás. É ir em frente ou nada.




Tem um monte de gente preciosa por aí que a gente não enxerga, que não recebe de nós um incentivo. O prólogo do livro traz uma frase que diz: Toda folha de grama tem seu anjo que se curva sobre ela e sussurra: “Cresce, cresce”. Tivemos a sorte de nascer em famílias que nos ofereceram uma certa estrutura, que nos possibilitaram estudar e crescer – já nascemos arbustos. Poderíamos retribuir sendo, para as folhas de grama, o anjo que sussurra.

Zero Hora de 20/03/2010
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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

VERSÕES - L. F. Verissimo


li e debati a história do Verissimo com meus alunos de primeiro ano de Ensino Médio. Nos detivemos na "evolução" das decisões que a donzela tomou com passar do tempo, ao encontrar um sapo em seu caminho.
Visando despertar a criatividade e buscar sempre a originalidade, pedi aos alunos que escrevessem (inventassem sua versão para este encontro da princesa e com o sapo). Separei alguns textos, que considerei mais criativos. Penso que estes textos necessitam de reescrita, que seus autores dediquem a mais algum tempo, e também com um certo distanciamento. Quem sabe outro dia traga para este espaço as versões destes alunos. Um de nossos maiores objetivos era mostrar-lhes a inter-textualidade, que o Veríssimo pratica na suas histórias.





Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um "psiu". Era um sapo, que lhe contou que na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se casaram e viveram felizes para sempre.


 Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com uma condição:


- Beijo de língua, não.


E viveram felizes para sempre.


 Muitos anos mais tarde, depois da revolução industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo, mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:


- Ué, pra quem já beijou sapo!


Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para sempre, porque o príncipe, inclusive, perdera tudo com o fim do feudalismo.




Já neste século, a mesma história. "Psiu", sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de hesitação até que se esclarecesse um ponto:


- Precisa ser donzela?


Não precisava. Casaram-se e viveram etc.


 Anos sessenta. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:


- Alguma você andou aprontando!


E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.


 Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o "psiu", depois a conversa do sapo, e - diante dos protestos do sapo - raciocina em voz alta:


- Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês!


E ela fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.


 Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que o sapo lhe passara.


E aconselhou:


- Esqueça o sapo e encontre essa bruxa!


Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda forte, nominativas em preferenciais.. Era a solução para a crise!

Zero Hora, 23/02/2009









O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...