segunda-feira, 30 de agosto de 2010

VERSÕES - L. F. Verissimo


li e debati a história do Verissimo com meus alunos de primeiro ano de Ensino Médio. Nos detivemos na "evolução" das decisões que a donzela tomou com passar do tempo, ao encontrar um sapo em seu caminho.
Visando despertar a criatividade e buscar sempre a originalidade, pedi aos alunos que escrevessem (inventassem sua versão para este encontro da princesa e com o sapo). Separei alguns textos, que considerei mais criativos. Penso que estes textos necessitam de reescrita, que seus autores dediquem a mais algum tempo, e também com um certo distanciamento. Quem sabe outro dia traga para este espaço as versões destes alunos. Um de nossos maiores objetivos era mostrar-lhes a inter-textualidade, que o Veríssimo pratica na suas histórias.





Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um "psiu". Era um sapo, que lhe contou que na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se casaram e viveram felizes para sempre.


 Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com uma condição:


- Beijo de língua, não.


E viveram felizes para sempre.


 Muitos anos mais tarde, depois da revolução industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo, mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:


- Ué, pra quem já beijou sapo!


Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para sempre, porque o príncipe, inclusive, perdera tudo com o fim do feudalismo.




Já neste século, a mesma história. "Psiu", sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de hesitação até que se esclarecesse um ponto:


- Precisa ser donzela?


Não precisava. Casaram-se e viveram etc.


 Anos sessenta. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:


- Alguma você andou aprontando!


E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.


 Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o "psiu", depois a conversa do sapo, e - diante dos protestos do sapo - raciocina em voz alta:


- Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês!


E ela fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.


 Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que o sapo lhe passara.


E aconselhou:


- Esqueça o sapo e encontre essa bruxa!


Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda forte, nominativas em preferenciais.. Era a solução para a crise!

Zero Hora, 23/02/2009









sábado, 28 de agosto de 2010

OS COLEGAS - Lygia Bojunga Nunes


No princípio eram só os dois. Tinham se encontrado pela primeira vez revirando a mesma lata de lixo.
- Esse osso que tem aí é meu!
- É meu!
- Já disse que é meu!

Se zangaram. Rosnaram um pro outro.
- Larga o osso!
- De jeito nenhum!
- Tô dizendo pra largar!
E então se atracaram dispostos a uma briga feia.

Foi quando passou por ali um garoto assobiando um samba.
Os dois interromperam a briga e começaram a prestar atenção na música que ele assobiava.
- Tá errado! - disse um deles pro garoto.
- Esse samba não é assim; é assim! - disse o outro. E começou a cantarolar certo a melodia.

O garoto nem ligou, foi embora. Mas os dois ficaram cantando a música até o fim. E depois um deles disse:
- Acho esse samba o máximo.
- Legal! - falou o outro.
- Sabe? Coisa que eu gosto é de fazer samba.
- Ah, é? Então somos colegas.

Esqueceram o osso e a briga. Sentaram no meio-fio e começaram a falar de samba. Ficaram muito interessados um no outro.
- Como é que você se chama?
- Não sei. Ninguém me chama pra eu saber como é que eu me chamo. E você?
- Vira-lata.
- Quem é que chama você assim?
- Chamar ninguém chama. Mas gritam "Sai daí seu vira-lata! Acerta uma pedra nesse vira-lata!"
- Bom, isso tudo eu também tô sempre ouvindo.
- Então pronto: você também se chama Vira-lata.

Se olharam melhor pra ver como é que eram: malhados, e o tamanho mais ou menos o mesmo, mas um tinha o rabo mais curtinho, uma orelha sempre em pé e a outra sempre caída; o outro tinha mais manchas no corpo e o cacoete de piscar o olho esquerdo.

Continuaram a conversar. Foram vendo que gostavam das mesmas coisas: futebol, praia, carnaval. Gostavam também de bater papo e de ficar olhando os barcos no mar.

- Acho que a gente vai acabar ficando amigo.
- Tá parecendo.

Dividiram o osso.

- Onde é que você mora?
- Num terreno baldio lá perto da praia.
- Tem casa?
- Não, mas tem um monte de entulho bom mesmo.
- Bom pra quê?
- Pra gente cavar quando quer, se esconder atrás quando precisa, fingir de casa quando cisma.
- Vou lá ver.

Quando chegou gostou um bocado do lugar.
- Tá me dando uma vontade de cismar que é minha casa...

Acabou cismando.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

HAVIA



Na boca do menino havia
um cordão uma unha um dedão

No pulso havia
uma pulseira do seu time
do coração.

Lembro,
havia árvore
florescendo no quintal
e a banda do colégio
alegrava a Semana da Pátria.

havia feriados
e os meninos perdidos
com tantos brinquedos.

Havia céus de nuvens escuras
véus de cabeças feitas perfeitas
na economia lazer e política havia
previsão do tempo im-perfeita.

Havia tanta coisa
num tempo que eu hesitei
tempo precioso 
que foi e se esvai...

O que perdemos
o que ganhamos
não sei se você sabe
eu já não sei!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ESSAS MENINAS - Carlos Drummond de Andrade



As alegres meninas que passam na rua, com suas pastas escolares, às vezes com os seus namorados. As alegres meninas que estão sempre rindo, comentando o besouro que entrou na classe e pousou no vestido da professora; essas meninas; essas coisas sem importância.

O uniforme as despersonaliza, mas o riso de cada uma as diferencia. Riem alto, riem musical, riem desafinado, riem sem motivo; riem.

Hoje de manhã estavam sérias, era como se nunca mais voltassem a rir e falar coisas sem importância. Faltava uma delas. O jornal dera notícia do crime. O corpo da menina encontrada naquelas condições, em lugar ermo.A selvageria de um tempo que não deixa mais rir.

As alegres meninas, agora sérias, tornaram-se adultas de uma hora para outra; essas mulheres.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

SÓ A PURA VERDADE - Hans Christian Andersen




Hoje em dia, todos temos acesso a todos (internet, celular...). Por todo lugar a informação nos persegue. David Coimbra, no jornal
Z. H. de 20 de agosto de 2010, diz que "a opinião dos outros está sempre pairando diante dos seus olhos. O mundo exterior jamais fica longe de você (...). O assunto do momento não é notícia; é obsessão. As pessoas são contra ou a favor e quem não concorda com elas é inimigo".

Há um provérbio que diz: "Quem conta um conto aumenta um ponto". E outro diz: "Cada cabeça uma sentença". Parece que um dos traços atraentes (e difíceis) da convivência entre as pessoas é a diversidade de opiniões sobre o mesmo fato.

Andersen (1805-1875), que se tornou um clássico da literatura, parece ir nessa direção, no conto Só a pura verdade.
 
 

Que coisa horrível! - disse uma Galinha, no outro extremo da cidade, bem longe do bairro onde a história se passara - é horrível o que houve no galinheiro! Nem arrisco a dormir sozinha esta noite. Ainda bem que somos muitas no poleiro.


E passou a contar o ocorrido, fazendo arrepiar as penas das outras galinhas, a cair a crista do Galo. E era tudo verdade, só a pura verdade.


Mas vamos começar do começo, que ocorreu no extremo oposto da cidade. O Sol desceu e as galinhas subiram. Uma delas, de penas brancas, e pernas curtas, punha os ovos regularmente e, como galinha, era respeitável em todos os sentidos. Chegada ao poleiro, começou a catar-se com o bico. Caiu ao chão uma peninha.


- Lá se foi uma pena! - disse ela - parece que, quanto mais me cato, tanto mais bonita vou ficando - acrescentou, por brincadeira, pois era ela o espírito mais alegre da galinhada, embora fosse, conforme já foi dito, criatura de todo o respeito. E logo adormeceu.


Era escuro ao redor. As galinhas estavam enfileiradas, lado a lado, e a que lhe estava mais próxima não dormia. Ela ouviu, e ao mesmo tempo não ouviu, como convém, para se viver em paz neste mundo. Mas teve, assim mesmo, de confiar à outra vizinha o que ouvira.


- Ouviste o que foi dito aqui! - cochichou - não vou dizer o nome de ninguém, mas há aqui uma Galinha que quer arrancar as próprias penas para ficar bonita. Se eu fosse Galo, a desprezaria.


Logo adiante, pouco acima das galinhas, estava pousada a Coruja, com o Corujão e as corujinhas. Naquela família, sim, todos tinham bons ouvidos. Ouviram cada palavra dita pela Galinha. Viraram os olhos e dona Coruja abanou-se com as asas.


- É feio escutar o que dizem os outros! - começou ela - mas, naturalmente, todos ouviram o que disse a Galinha. Eu o ouvi com os meus próprios ouvidos, e deve-se escutar, antes que caiam as orelhas. Uma das galinhas esqueceu a tal ponto a decência, que está tirando todas as penas e deixa o Galo ver tudo.


- Prenez garde aux enfants! - disse papai Corujão - isso não é conversa para crianças ouvirem.


- Preciso contar o caso à coruja vizinha, senhora séria e respeitável.
Dona Coruja saiu voando.


- Hu-hu! Uhu-uhu-uhu! - riram as duas, juntas, pouco depois.


Achavam-se um pouco acima do pombal do vizinho, e as pombas ouviram-nas comentar o caso:


- Ouviram esta? Ouçam, que esta é muito boa! Há aí uma Galinha que arrancou todas as penas por causa do Galo! Vai morrer de frio, se é que já não morreu. Huuu - huuuu!


- Onde? Onde? Onde? - arrulharam as pombas.


- No galinheiro do vizinho. É como se eu mesma o tivesse visto. É coisa que quase nem se devia contar, pois é um tanto indecente. Mas é a pura verdade!


- Ora, ora, ora! - arrulharam de novo as pombas.


E passaram a história adiante.


- Há uma Galinha - há quem diga que são duas - que arrancou todas as penas para não ser igual às outras e chamar a atenção do Galo. É uma brincadeira arriscada, pois apanhar um resfriado é o que há de mais fácil, e morrer de febre é o que menos custa. De fato, já morreram, as duas...


- Acordem! Acordem! cantou o Galo, voando para o alto do cercado.


O sono ainda lhe pesava nos olhos, mas apesar disso ele cantava:


- Morreram três galinhas, de infeliz paixão por um Galo. Elas arrancaram todas as penas. É uma história muito feia, não quero guardá-la comigo. Que vá adiante!


- Deixa que vá adiante - piaram os morcegos.


- Deixa que vá! Deixa que vá! - cacarejaram as outras galinhas.


A história foi assim circulando, de galinheiro em galinheiro, e, por fim, voltou ao local de onde viera.


- São cinco galinhas - contavam - todas arrancaram as penas para mostrar qual delas tinha emagrecido mais de paixão pelo Galo. Depois brigaram, de tirar sangue, e se mataram de bicadas. Ficaram mortas no terreiro. Foi uma ignomínia para a família delas, e um grande prejuízo para o dono do galinheiro.


Então, a galinha que perdera uma única peninha ao catar-se, não reconheceu a sua própria história, e como fosse uma galinha respeitável, disse lá com os seus botões:


- Desprezo as galinhas como essas. Mas não serão as últimas. Há muitas mais dessa marca. Não se deve silenciar sobre tais coisas. Farei o que eu puder para que essa história saia nos jornais e corra o país todo. É o que merecem essas galinhas e também a família delas.


E a história saiu nos jornais, foi impressa, e uma coisa é verdadeira: uma única peninha pode facilmente transformar-se em cinco galinhas.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...