segunda-feira, 9 de agosto de 2010

TATU - L. F. Verissimo

Li que a Cleo Pires mandou fazer a tatuagem de um verso do Fernando Pessoa num, se entendi bem, quadril, para ser fotografada para a "Playboy". A tatuagem é provisória, mas Cleo Pires pode muito bem estar inaugurando um novo espaço para a literatura. Você não abriria mais a Playboy só para ver mulher nua, teria material de leitura na própria mulher nua. Um hai-kai em cada seio, Drummond e Bandeira nas nádegas, um resumo da Odisseia começando no pescoço, circundando o umbigo como se fosse a ilha de Calipso e desaparecendo no púbis, ou no retorno simbólico de Ulisses ao lar e ao aconchego de Penélope. Você poderia elogiar a artista pelada do mês mas discutir a sua escolha de textos (“Kafka nas coxas?!”). E ter uma desculpa pronta ao ser flagrado espiando uma nua da Playboy escondido.



– Nem notei a mulher. Eu estava lendo o autor novo no seu pé.


A tatuagem é a mais nova forma de arte do mundo – embora não tenha nada de novo. O próprio nome, “tatu”, vem da prática de perfuração da pele que o Capitão Cook já encontrou no Tahiti e em outras ilhas dos mares do Sul no século dezoito. Na China antiga o ideograma para tatuagem era “wen”, que queria dizer tanto escrita quanto sabedoria, e as palavras que cobriam um corpo humano eram uma espécie de prece permanente, ou uma maneira de manter contato com os poderes divinos depois de um processo de iniciação. Os tatuados pertenciam a uma irmandade exclusiva, o que não é o caso hoje, quando todos estão se tatuando, por nenhuma razão superior e nem sempre com muita sabedoria.


Os casos mais evidentes de imprevidência tatuada são os nomes de amantes gravados sob corações entrelaçados, quando não havia dúvida que o amor seria eterno, e que precisam ser apagados quando o amor acaba. E imagino que atrizes e atores que cobrem seus corpos com tatuagens estejam conscientemente limitando a sua escolha de papéis. Adão e Eva, por exemplo, nem pensar, a não ser numa versão muito livre do Gênesis.


Mas não deixa de ser fascinante esta nova forma de arte, feita não em papel ou tela – ou nas paredes, como o grafite, a outra forma de arte a que ela mais se assemelha –, mas na pele do corpo. Mistura de decoração, assertiva pessoal, autossacrifício e kitsch assumido. Arte feita com cicatrizes. Ou arte evanescente, como no caso da poesia no belo costado da Cleo Pires.

Zero Hora, segunda-feira, 9 de agosto de 2010

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

ESCOLA DE BEM-TE-VIS - Cecília Meireles


Muitos textos que encontro circulando por aí, seja em jornais impressos ou on line, denunciam a falta de imaginação de seus articulistas. Ou mais do que isso: a falta de uma base sólida de leitura de bons livros.
Há jornais que dão  a impressão de que foram escritos, do início ao fim, pela mesma pessoa. Muito "sem sal" ou "chupados" do google.
Será que nossos jornalistas e articulistas, em sua maioria, lêem pouco? Sua formação é cada vez mais precária e, com isso, a tradição cultural está sendo deixada de lado?
Nossas escolas e nossos professores estão captando alguma coisa nessa direção, valorizando os livros e dando-os "de presente" às novas gerações?
O texto da Cecília Meireles, Escola de bem-te-vis, tem uma dimensão poética que o impulsina a alturas muito mais elevadas do eu comento aqui. Por isso, vamos ao mesmo.



Muita gente já não acredita que existam pássaros, a não ser em gravuras ou empalhados nos museus – o que é perfeitamente natural, dado o novo aspecto da terra, que, em lugar de árvores, produz com mais abundância blocos de cimento armado. Mas ainda há pássaros, sim. Existem tantos, em redor da minha casa, que até agora não tive (nem creio que venha a ter) tempo de saber seus nomes, conhecer suas cores, entender sua linguagem. Porque evidentemente os pássaros falam. Há muitos, muitos anos, no meu primeiro livro de inglês se lia: "Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros..."


Quando ouço um gorjeio nestas mangueiras e ciprestes, logo penso no sultão e nessa linguagem que ele entendia. Fico atenta, mas não consigo traduzir nada. No entanto, bem sei que os pássaros estão conversando.


O papagaio e a arara, esses aprendem o que se lhes ensinam, e falam como doutores. E há o bem-te-vi, que fala português de nascença, mas infelizmente só diz o seu próprio nome, decerto sem saber que assim se chama.


Anos e anos a fio, os bem-te-vis do meu bairro nascem, crescem, brigam, falam... – depois deixam de ser ouvidos: não sei se caem nas panelas dos sibaritas, se arranjam emprego, se viajam, se tiram férias, se fazem turismo. Não sei.


Mas, enquanto andam por aqui, são pacientemente instruídos por seus pais ou professores, e parece que, tão cedo começam a voar, já vão para as aulas, ao contrário de muitas crianças que antes de irem para as aulas já estão voando.


Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos – ah! principalmente os gatos… Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só: "Bem-te-vi! Bem-te-vi", que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas.


Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas têm mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: "Bem-te-vi!" – o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: "Te-vi!". Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. "Bem-te-vi! Bem-te-vi!", tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de "Te-vi! Te-vi! Te-vi!", que deixou o próprio eco muito desconfiado.


Essa revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. "Bem-te-vi!", diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. "Te-vi! Te-vi!", gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos.


Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: "Bem-te-vi! Bem-te-vi!" – e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: "Te-vi! Te-vi!". Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família!) E passaram a responder, por muito favor, "Vi! Vi!" Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jacto...


"Bem-te-vi!", exclamam os anciãos, com sua dignidade ofendida. "Te-vi!", respondem os filhos revoltosos. E os netos, meio chochos: "Vi!Vi!"


Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente – quem sabe? – uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.

 "O que se diz e o que se entende", crônicas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p. 95-7, in "Antologia de Textos do Modernismo", Raimundo Barbadinho Neto, Rio de Janeiro, 1982 : 09/10/1998

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A DISFUNÇÃO ERÉTIL - Paulo Sant' Ana



Boa parte de grandes cronistas barasileiros, de que gosto, estão mortos. É o caso de Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade.
A crônica se alimenta de temas cotidianos. Mas vai além da linguagem jornalística, ao acrescentar pitadas de humor, ironia, comédia ou tragédia.
Paulo Sant ' Ana escreve diariamente no jornal Zero Hora de Porto Alegre. Seus textos são bons, algumas vezes nem tanto.
me diverti e refleti com a crônica a seguir.


A medicina tem a obsessão de mudar os nomes: trocou oculista por oftalmologista, assim como a rótula, este popular osso do joelho, passou agora a se chamar patela.



Os médicos, ou melhor, a medicina, na sua incansável ânsia reformista-vocabular já mudou o nome do perônio para fíbula e da omoplata para escápula.


O cúmulo desse delírio transformista se dá com as falsas cordas vocais. Como se sabe, existe em anatomia as cordas vocais e as “falsas cordas vocais”.


Pois saibam, senhoras e senhores, que agora a medicina trocou o nome das falsas cordas vocais para pregas vestibulares, credo em cruz, até parece que querem transferir as atribuições dos otorrinos para os proctologistas.


Outra frescura da medicina pós-moderna foi mudar a broxura para disfunção erétil.


Um amigo meu foi estes dias consultar um médico para disfunção erétil.


O médico colocou-o numa sala fechada e envolveu o pênis do meu amigo num aparelho que mais parecia um trambolho de marceneiro, de onde emergiam fios que se comunicavam com o computador do médico.


O facultativo tentava medir por aquela geringonça o tamanho da disfunção erétil de meu amigo.


Depois de 45 minutos daquele exame constrangedor, o médico deu ao meu amigo o seu diagnóstico: o máximo que meu amigo vinha tendo e podia vir a ter era uma semiereção.


Meu amigo concordou com o diagnóstico e disse ao médico que com aquela incompletude ele não vinha cumprindo nem seus deveres maritais nem seus desvios adulterinos, pelo que necessitava urgentemente de uma reforma na sua área de potência.


O médico concluiu com meu amigo: ele teria de submeter-se a um tratamento que custaria R$ 1.200 mensais e duraria 24 meses.

Meu amigo despediu-se do médico com as seguintes palavras: “Não vai dar. Em primeiro lugar, muito caro. Em segundo lugar, tenho 70 anos e é quase certo, pela marcha que vai minha saúde, que não chegarei a viver mais dois anos, os dois anos da redenção que o senhor me promete. Eu precisava de uma solução urgente, falta pouco para terminar minha vida e o senhor me oferece um prazo fatídico. Cá para nós, meu doutor, não existe na cidade um pronto-socorro para disfunção erétil?”.


O médico: “Não existe. Fora o Viagra, que o senhor me disse não ter funcionado no seu caso, só talvez a prótese peniana, que no entanto apresenta resultados altamente duvidosos.”


O meu amigo saiu do consultório, depois de pagar a consulta, e entrou desesperado na primeira porta de psiquiatra que encontrou no mesmo prédio. Como não pôde consertar o defeito primacial do seu corpo, foi tratar de pelo menos desentortar a cabeça.


 
Zero Hora, Quinta-feira, 05 de agosto de 2010

terça-feira, 3 de agosto de 2010

PELADA DE SUBÚRBIO - Armando Nogueira




Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos.

A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória.



Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro.



Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara.

 
A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola.



No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha.




do livro O melhor da crônica brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1980.





sexta-feira, 30 de julho de 2010

COMO ARMAR UM PRESÉPIO - José Paulo Paes

Pegar uma paisagem qualquer
cortar todas as árvores e transformá-las em papel de imprensa
enviar para o matadouro mais próximo todos os animais
retirar da terra o petróleo ferro urânio que possa

eventualmente conter e fabricar carros tanques aviões

mísseis nucleares cujos morticínios hão de ser noticiados

com destaque
despejar os detritos industriais nos rios e lagos
exterminar com herbicida ou napalm os últimos traços de vegetação
evacuar a população sobrevivente para as fábricas e

cortiços da cidade


depois de reduzir a paisagem à medida do homem
erguer um estábulo com restos de madeira cobri-lo de

chapas enferrujadas e esperar


esperar que algum boi doente algum burro fugido algum

carneiro sem dono venha nele esconder-se
esperar que venha ajoelhar-se diante dele algum velho

pastor que ainda acredite no milagre
esperar esperar
quem sabe um dia não nasce ali uma criança e a vida recomeça?

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...