domingo, 6 de junho de 2010

ENCONTRO COM BANDEIRA - Affonso Romano de Sant'Anna




NÃO VAMOS ATROPELAR O BOM GOSTO

Texto literário é aquele que sobrevive ao passar do tempo. Não é descartável dias depois, é, no mínimo, reutilizável. Pode/deve ser reescrito, lapidado, como o artista faz com sua obra.

O que acontece, cada vez mais, principalmente com o velocidade da internet, é o apelo para espalhar pelo mundo nossa "obra". Mas aí estamos enredados mais ao narcisismo e à vontade de "aparecer", do que à necessidade de fazer balançar a sociedade com nossa literatura.

Com essa pressa e presos ao desejo de que olhem para nós, "vejam como tenho idéias brilhantes", ficamos atolados à superfície, e pouco tocamos/alcançamos os conceitos e imagens, que tornam possível pensar e sentir a beleza.

Antes de semearmos nossa "obra" no mundo, deveríamos dar-lhe um tempo para germinar, acostumar-se com as condições ambientais, para que de fato seja fértil. Aguardar alguns dias para então relê-la e perguntar: vai para o lixo? É descartável? Reutilizável? Como pode ser melhorada?

O pior é que a maioria de nós, escritores de província, está convencido de que escreve bem. Claro, nossos familiares e amigos, mesmo tendo ressalvas e algum conhecimento da coisa, quase sempre vão nos elogiar.

Acima de tudo, não quero que meu texto suscite, ou o amor, ou o ódio, mas que possibilite, minimamente, uma abertura para  a reflexão.

Genial, entre outras coisas da crônica abaixo, é a afirmação de Sant'Anna de que "aos 17 anos (...) não entendia por que Bandeira ou Drummond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas."

Vejam como a pressa caminha na direção contrária da "boa" poesia/literatura.



Eu tinha uns 17 anos. E Manuel Bandeira era, então, considerado o maior poeta do país. E com 17 anos é não só desculpável, mas aconselhável que as pessoas façam a catarse de seus sentimentos em forma de versos. Os reincidentes, é claro, continuam vida afora e podem pelos versos chegar à poesia.


Morando numa cidade do interior, eu olhava o Rio de Janeiro onde resplandecia a glória literária de alguns mitos daquela época. Então fiz como muito adolescente faz: juntei os meus versos, saí com eles debaixo do braço fui mostrá-los a Bandeira e Drummond.


Toda vez que, hoje em dia, algum poeta iniciante me procura, me lembro do que se passou comigo em relação a Manuel Bandeira. Para alguns tenho narrado o fato como algo, talvez, pedagógico. Se todo autor quer ver sua obra lida e divulgada, o jovem tem uma ansiedade específica. Ele não dispõe de editoras, e, ainda ninguém, precisa do aval do outro para se entender. E espera que o outro lhe abra o caminho e reconheça seu talento.


Ser jovem é muito dificultoso.

O fato foi que meu irmão Carlos, no Rio, conseguiu um encontro nosso com Bandeira. E um dia desembarco nesta cidade pela primeira vez vendo o mar, pela primeira vez cara a cara com os poetões da época.


Encurtarei a estória. De repente, estou subindo num elevador ali na Av. Beira-Mar, onde morava Bandeira. Eu havia trazido um livro com centenas de poemas, que um amigo encadernou. Naquela época escrevia muito, trezentos e tantos poemas por ano. E não entendia por que Bandeira ou Drumond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas. A necessidade de escrever era tal, que dormia com papel e lápis ao lado da cama ou, às vezes, com a própria máquina de escrever. Assim, quando a poesia baixava nos lençóis adolescentes, bastava pôr os braços para fora e registrar. E assim podia dormir aliviado.


Mas o poeta havia pedido aos intermediários que eu fizesse uma seleção dos textos. O que era justo. E Bandeira tinha sempre uma exigência: o estreante deveria trazer algum poema com rima e métrica, um soneto, por exemplo. Era uma maneira de ver se o candidato havia feito opção pelo verso livre por incompetência ou por conhecimento de causa.


Abriu-se a porta do apartamento. Eu nunca tinha estado em apartamento de escritor. A rigor não posso nem garantir se havia visto algum escritor de verdade assim tão perto. E não estava em condições emocionais de reparar em nada. Fingia uma tensa naturalidade mineira. O irmão mais velho ali ao lado para garantir.


A conversa foi curta. Tudo não deve ter passado de dez a quinze minutos. Lembro que Bandeira estava preparando um café ou chá e nos ofereceu. Havia uma outra pessoa, um vulto cinza por ali, com o qual conversava quando chegamos. Bandeira se levantava de vez em quando para pegar uma coisa ou outra. E tossia. Tossia talvez já profissionalmente, como tuberculoso convicto.


Lá pelas tantas, ele disse: pode deixar aí os seus versos. Não precisa deixar todos, escolha os melhores. Vou ler. Se não forem bons, eu digo, hein?!


– Claro, é isso que eu quero – respondi juvenilmente, certo de que ele ia acabar gostando.


Voltei para Juiz de Fora. Acho que não esperava que o poeta respondesse.Um dia chega uma carta. Envelope fino, papel de seda, umas dez linhas. Começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”. A seguir citava uns três poemas melhores e os versos finais do “Poema aos poemas que ainda não foram escritos”. Oh! Gratificação! ele copiara com sua letra aqueles versos: “saber que os poemas que ainda não foram escritos/ virão como o parente longínquo,/como a noite/ e como a morte”.


Não fiquei triste ou chocado com sua crítica sincera. Olhei as bananeiras do quintal vizinho com um certo suspiro esperançoso. Levantei-me, saí andando pela casa, com um ar de parvo feliz. Eu havia feito quatro versos que agradaram ao poeta grande.


A poesia, então, era possível.


SANT’ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

RECEITA contra dor de amor - Roseana Murray


arte de Miró


chore um mar inteiro
com todos os seus barcos a vela
chore o céu e suas estrelas
os seus mistérios o seu silêncio
chore um equilibrista caminhado
sobre a face de um poema
chore o sol e a lua
a chuva e o vento

para que uma nova semente
entre pela janela adentro

do livro Receitas de olhar.

terça-feira, 1 de junho de 2010

EXPERIÊNCIA - Luis Fernando Veríssimo

Nesta história nos deparamos com a intertextualidade. Todos assistimos ao filme Dr. Frankstein, em suas diferentes versões. Nos filmes há uma dose de terror e a necessidade de reflexões filosóficas, tais como: quem tem o direito de gerar a vida? Quais os limites ético-morais para a ação do homem?
Veríssimo retoma o tema do filme, que é a "criação" de um ser em laboratório, um "monstro", feito pelo próprio homem. Mas o andamento da história, e as consequências de tais façanhas, tomam um rumo diferente ao dos filmes. Ah, e os personagens da história (bem-humorada) do Veríssimo são três simpáticos loucos, mais engraçados até do que a criatura por eles criada.
Antes do contar a história para os alunos na escola, não havia me dado conta da relação com Frankstein. Os alunos de quinta série do Ensino Fundamental me chamaram a atenção para isso. 


Em vez de um, são três os cientistas loucos. Mesmo trabalhando em conjunto durante anos, os três têm dificuldades em terminar sua obra: um homem criado no  laboratório, com os restos de outros homens. Resta-lhes pouco tempo. Os camponeses estão subindo na direção do castelo, com seus archotes, para linchá-los.

Uma descarga elétrica percorre o corpo da Criatura estendida sobre a mesa. É a centésima descarga que ele recebe. Mas desta vez a criatura desperta. Abre os olhos. Estica os braços. Estica as pernas.

- Ela vive! - Exclama o primeiro cientista louco.
- deu certo! - Grita o segundo.
- Levanta-te e anda! - Ordena o terceiro.

Lentamente, a criatura começa a se erguer. Senta na mesa. Olha para os seus criadores. Um olho é castanho e o outro é azul. Tudo bem, não se pode pensar em tudo. O importante é que a Criatura está viva. Finalmente, a Criatura está viva e funciona!

A Criatura desce da mesa, dá um passo. Cai. É cercada pelos três cientistas. O que houve?
- Já vi tudo - diz o primeiro cientista, o mais gordo. - Ela tem duas pernas esquerdas. Quem era o encarregado das pernas?
- Eu - confessa o segundo cientista, o de bigode. - Errei, pronto. Mas os braços também estão errados e braço não era comigo.
- Peguei dois braços direitos de propósito - defende-se o terceiro cientista, o de óculos grossos. - Assim ela seria ambidestra e...

- Está bem, está bem. Não podemos perder tempo. Vamos substituir uma perna por um braço, e vice-versa.
- Mas aí ela fica renga.
- Na hora de bater palmas, vai cair no chão.
- No futebol, quando dominar com a direita, vai ser mão.
- Vocês deviam ter pensado nisso antes! Me ajudem a botá-la de novo na mesa. Rápido, que os camponeses já estão na porta.

A criatura é recolocada sobre a mesa. Começa a operação.
- Bisturi.
- Está aqui.
- Ai! Olha aí, me cortou...
- Desculpe.
- Pinça.
- Eu estou pensando. É que...
- "Pensa" não, Pinça!

Os reimplantes são completados. A Criatura, mesmo renga, pode andar. Mas agora a sua cabeça, inexplicavelmente, está ao contrário.

Os camponeses já estão dentro do castelo. Forçam a porta do laboratório.

- Temos que recorrer a toda a nossa engenhosidade, saber e talento - diz o cientista mais gordo. 
- Para fazer a criatura funcionar?
- Não. Para dar uma explicação aos camponeses. Afinal, há anos que eles se sacrificam pelas nossas experiências. Nos deram suas economias e seus órgãos. E só o que temos para lhes mostrar é este monstro.

Os camponeses invadem o laboratório e avançam sobre os três cientistas loucos. O mais gordo os detém com um sorriso, no entanto.

- Parem! Nós não somos os culpados.

- Então quem é?
- Bem. Em 1973 teve a crise do petróleo e...

                                                   *

Na carruagem, a quilômetros do castelo, o segundo cientista louco pergunta para o primeiro:
- O que é que a crise do petróleo teve a ver com o fracasso da nossa Criatura?
-  Nada. Mas, até eles se darem conta, estaremos na fronteira.

domingo, 30 de maio de 2010

TOMBO - Maria Dinorah

A rua ri
de meu tombo.

Henrique
ri que se rola.

João se rola de rir.

levanto
meio sem jeito
e rio
riso sem graça,

enquanto
de tanto riso
se sacode toda a praça!

sexta-feira, 28 de maio de 2010

"Chatear" e "encher" - Paulo Mendes Campos


Contei esta história nesta semana na escola. Descobri que algumas profes, em outras escolas (públicas), haviam teatralizado com seus alunos do Ensino Médio. O livro que garimpei na biblioteca é da década de oitenta, da coleção Para gostar de ler, da Editora Ática. Saudosismo à parte, esta coleção de fato nos levou a gostar de ler, e hoje continua a despertar na gurizada o gosto pela leitura. Não tem como negar: com muito amor pelos livros, e com o olhar atento ao nosso redor, podemos despertar muitíssimo as crianças e os jovens para a descoberta dos livros e da leitura.



Um amigo meu me ensina a diferença entre "chatear" e "encher".



Chatear é assim: você telefona para um escritório qualquer na cidade.


- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?


- Aqui não tem nenhum Valdemar.


Daí a alguns minutos você liga de novo:


- O Valdemar, por obséquio.


- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.


- Mas não é do número tal?


- É, mas aqui nunca teve nenhum Valdemar.

Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:


- Por favor, o Valdemar já chegou?


- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo desse Valdemar nunca trabalhou aqui?


- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.


- Não chateia.

Daí a dez minutos, liga de novo.


- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?


O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.

Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:

- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?



O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...