quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

TIRANDO O CHAPÉU PRA DEUS



Espantado, o pai escuta do filho a seguinte revelação:
- Não quero ser escritor, quero ser engenheiro! Adoro fazer cálculos, plantas-baixas de casas, e até já comprei uma calculadora!

Mas era só o que faltava, dias atrás o piá disse que não gostava de matemática!


É duro não colocar o desejo de pai no lombo do filho. Só resta agora ensaiar um diálogo com a cria:
- Filho, isso não é problema. Há grandes escritores e poetas, até compositores e músicos, que são engenheiros, médicos... Uma coisa não exclui a outra! Tu sabe que, no Brasil, pouquíssimos escritores conseguem viver de seus livros? É, eles têm que ter outra profissão. E vale o mesmo para os músicos, etc. Você conhece o Moacyr Scliar, não? Pois é, a maioria sabe que ele é escritor, e não é por acaso, ele é lido no mundo todo, e faz parte da Academia Brasileira de Letras. Porém, ele é médico também. E sabe que a arte da medicina tem tudo a ver com a literatura? Pensa no que as duas artes fazem, e você vai ver que isso é verdade. Se a literatura toca na alma das pessoas, a medicina toca na alma e no corpo. E o talento numa coisa não exclui o talento para outras.


Coincidência ou não, essa conversa de filho para pai deu-se na semana em que o Bagual nos deixou. Conheci ele, primeiro, como médico. Naqueles exames que nos autorizavam a usar a piscina do clube. A gente dava um basta nas frieiras às vésperas de abertura da temporada. Nosso sobrenome na carteirinha servia de pontapé para uma conversa animada. E ele sempre conhecia alguém da família!


Aos poucos, quando suas composições começaram a habitar nosso universo, desenhamos um grande poeta em nosso imaginário. Aí, à imagem pública do médico Martin Agnoletto estava sobreposta à do poeta Martin Agnoletto. Mas só agora é que eu me pergunto sobre esse talento de transformar as lidas do cotidiano em poesia, trançar a palha dos versos com a mesma desenvoltura de quem maneja um bisturi numa sala de cirurgia.


Bagual, isso é para poucos. A arte da palavra requer muito mais do que conhecimento técnico. Ao escrever lindas canções, deixavas te envolver numa atmosfera que era a de “ouvir a voz do coração”.


É o que eu tento, como pretendente a poeta sonhador. Mas é difícil! Chego a pensar, de vez em quando, que não nasci para isso. Mas é uma tal teimosia (pretensão exagerada?), uma crença de que, nalgum momento, serei visitado pela deusa da criação. E a toda hora me vem à cabeça um poema do Mário Quintana, intitulado Versículo inédito do Gênesis: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação”.


Com alguma culpa, constato exatamente essa missão humana, apenas humana, como diz o Quintana, de continuar a criar, sendo essa a maior razão de nossa vida. Não, não estou descartando outras lidas do nosso dia-a-dia. Mas confesso que a eternidade em que acredito, com certeza absoluta, está na nossa capacidade de sermos criativos. Acho que era esse também o ideal de Fernando Pessoa, quando ele disse que “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.


A culpa por ter estado indiferente ao que se passava contigo, com a desculpa de ter andado muito ocupado, tem me levado a tentar decifrar (só agora?) o quanto você teria para nos dizer sobre a vida, o amor, a bondade, ou a maldade dos homens. Uma parte disso será revelado pela narrativa que vai nascer da memória de teus amigos e familiares. Mas a outra (grande) parte vou encontrar ouvindo as músicas e prestando atenção nas letras que você compôs. E uma certeza, a grande certeza, eu já tenho: tua eternidade está garantida, ao lado dos grandes criadores! Qual a importância disso, agora que vivemos a dor da tua falta entre nós? Só o tempo vai nos acalmar nessa hora, e a eternização de tua obra vai se solidificar com o passar do tempo.


Mas uma lição que aprendi do pouco convívio que tive contigo, acima de tudo, e que gostaria de confessar aos leitores, é o seguinte: de nada serve nossa inteligência, se ela não andar de mãos dadas com o nosso coração! Foi do convívio dessas duas partes de teu ser que nos presenteou com versos do tipo: “Na xucra bailanta” “no fundo dos céus” “tirando o chapéu pra Deus”!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A FORMIGA LARANJINHA



A formiga laranjinha
mordeu, mordeu,
até formigar
minha mão.

Não é o fim

da picada

ser formigado
por laranjinhas
antenadas?

Isso eu sei:
as antenas
conectadas
nas cabeças
das laranjinhas
é que guiam
(seja nos vales
ou ribanceiras)
toda essa legião
de trabalhadeiras.

Um poeta perguntou:
“Qual a forma da formiga?
Se andam sempre juntas,
não devem ter a forma de amiga?”.

Se tem formiga
com a forma de laranjinha,
não tem formiga
com a forma de abóbora,
morango, melancia e melão?

E se eu as devorasse,
não formigariam minha mão?

Ainda bem
que a formiga
laranjinha
formigou
meu coração!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

SONETILHO DE VERÃO - Paulo Henriques Brito



Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A ideia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.

O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O AMOR DE MAU HUMOR - Ruy Castro



Gaúcho que é gaúcho não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém. Nem em baile de carnaval. Gaúcho que é gaúcho não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens e, assim mesmo, se olhar por mais de trinta segundos sai briga. (Luis Fernando Veríssimo).


Um homem nunca está completo até que se casa. A partir daí, está acabado. (Zsa Zsa Gabor).


"Conhece-te a ti mesmo"? Se eu me conhecesse, fugiria espavorido. (Johann Wolfgang Goethe).


Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. (Machado de Assis).


Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer? (Sigmund Freud).


Como é idiota a civilização! De que serve o corpo se nos obrigam a enclausurá-lo num estojo como se ele fosse um violino raro? (Katherine Mansfield).


Conte-me tudo a seu respeito - suas lutas, seus sonhos, seu número de telefone. (Peter Arno).


A maquiagem nos diz mais do que um rosto. (Oscar Wilde).


Fiz análise de grupo quando era jovem porque não podia pagar uma análise individual. Cheguei a ser capitão do time de vôlei dos Paranóicos Latentes. Todos nós, os neuróticos, tirávamos o domingo de manhã para fazer algum esporte. Era sempre os Roedores de Unhas contra os Mijões na Cama. (Woody Allen).


O problema de resistir a uma tentação é que você pode não ter uma segunda chance. (Laurence J. Peter).


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

ECRITORES E COZINHIROS


Estou guardando as compras que fiz no supermercado e, para minha surpresa, encontro uma caixinha de creme de leite. Mas como o creme de leite veio parar aqui, se eu não o havia anotado na minha lista de compras?


É a lista que me orienta diante das gôndolas, no supermercado. É assim que passo de uma ponta a outra, sessão por sessão, como quem busca encontrar os ingredientes que vão ajudar a preparar a essência da juventude.


Tem gente que detesta ir ao mercado. Eu não. Vou quase todos os dias. Mas estou vacinado contra o impulso de comprar tudo que aparece pela frente. Óbvio que não fui eu que coloquei aquela caixinha de creme de leite dentro de minhas sacolas.


Já que disponho de um misterioso creme de leite para o almoço de domingo, e eu adoro estrogonofe, e como meus amigos reclamam que faz um tempão que não faço um almoço e os convido, por que não aproveitar a oportunidade?...


Alguém já fez estrogonofe para comer sozinho? Deve ser o acúmulo do egoísmo. E eu me sentiria muito mal não dividir um prato feito com um ingrediente que não é meu!


Caprichei no almoço. Sem a pressa de quem come fora, por quilo. Sem a pressa de quem come em restaurante e nunca se deu o trabalho de conhecer a cozinha e os cozinheiros. Muito menos pensou na necessidade que tem, quem cozinha, de saber se a pessoa gostou ou não de comer que ele ofertou.


Os outros vão saborear, ou vão detestar, pratos que nasceram de teu amor, ou da tua indiferença, da tua amizade para com eles. É dura a vida dos cozinheiros. Eles criam uma expectativa a respeito da reação daqueles que se servem da sua criação, seja um pudim, uma feijoada ou um estrogonofe.

Rubem Alves, numa crônica cujo título é Escritores e cozinheiros, diz que “gostaria de ter um restaurante. Mais precisamente: gostaria de ser um cozinheiro (...) É que nas cozinhas se prepara o prazer. Mas para preparar o prazer, o cozinheiro deve ser um adivinho de desejos, conhecedor dos segredos da alma e do corpo. (...) Já que não sei cozinhar, escrevo como quem cozinha. Minha cabeça é uma cozinha. O cozinheiro cozinha pensando no prazer que sua arte irá causar naquele que come. Eu escrevo pensando no prazer que o meu texto poderá produzir naquele que me lê. Há uma relação entre cozinhar e escrever. Nas suas origens, sabor e saber são a mesma coisa. (...) Saber é experimentar o gosto das coisas: comê-las. O sábio é aquele que conhece não só com os olhos, mas especialmente com a boca. Roland Barthes confessa que havia chegado para ele o momento do esquecimento de todos os saberes sedimentados pela tradição e que agora o que lhe interessava era ‘ o máximo possível de sabor’. Ele queria escrever como que cozinha. Ele queria ler como quem come uma comida deliciosa”.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...