quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
MAMÃE
Mamãe alistou-se pra guerra
vai saciar a fome das trincheiras
na linha de frente vai o estômago
orações e ladainhas vão atrás.
Nem bem chega o sol
e a casa está arrumada
no rastro
do esquecimento
o vidro de café
sem tampa
o pão na travessa
ao relento.
Quando ultrapassa o quintal
o olhar de mamãe se liberta
o ladrão invadiu
o pátio do visinho
a tia excêntrica
prepara seu funeral
a prima esquisita
não pára de fungar...
Mamãe faz academia
quer estar preparada
pra quando o mundo acabar!
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
INVENTÁRIO
Papai me espreita
pela fresta da lápide.
É a foto de um jovem
no obituário do jornal.
Sobre o guarda-roupa
malas antigas
guardam fotos
amareladas.
Papai vela
minhas lembranças...
Em silêncio
junto forças
para não claudicar.
O ronco do fusquinha
mais parece frigideira
e faz do alto dos barrancos
agitar-se a capoeira
(há fotos e documentos
no porta-luvas)
como sempre,
retorna ao lar!
sábado, 21 de fevereiro de 2009
CONJECTURAS
Desenho - Fernando Pessoa
Em frente de casa, desde a manhã, um senhor de meia idade, que não mora na casa, lança olhares morteiros em seus desafios.
O olho decola por cima da rua e do movimento dos carros. Olha desenvolto, para todos os lados, não acusa timidez.
Roupas simples, à primeira vista parece da roça. Usa bigode, fiel a modas passadas. Está rude e inquieto, como aqueles seres que chegaram há pouco num lugar estranho.
Noutro ambiente, nervos excitados. Está na casa dos outros.
À tarde, domesticou-se. Após o almoço lava a louça, espia o armário com familiaridade, coloca o detergente na esponja, abre a torneira e dirige a palavra aos da casa, critica o governo com seus impostos sem fazer rodeios. Declina décadas de experiências para decifrar a estação que ora vivemos.
Já é da família. Alisa o pêlo do gato, acaricia o cachorro, encara os vizinhos como reles mortais. Decerto a digestão foi fácil, após o almoço, sem chás e sais de frutas.
Desajeitado na área, em frente à casa, com a mão no queixo, sem saber que o observo do outro lado da rua, causa-me desconforto. Nem vejo que há um cão, sentado, no pátio. De nada serve perguntar-me de onde vem, o que faz, por que está ali, se pirou ou não.
Meu filho volta do colégio. Está feliz com a escola. Como faz duas vezes por dia, mostra-me seu álbum de figurinhas. Deseja compartilhar seu prazer de colecionar. Quando abre o álbum, seus olhos, alegres e curiosos, irradiam cores e formas.
O álbum é parte de um ritual, como o regresso de Ulisses a Ítaca, sem teorias, paradigmas, conjunturas. Apenas seu pai se enreda em hipóteses.
Seu corpo sorri. Minha consciência se inquieta. Se aliena?
algo estranho acontece. Nada sei, senão conjecturas, a respeito do meu visinho.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
CONFLITOS
ÊTA VIDA
APRESSADA!
A cigarra
apressada
quer antecipar
a primavera
e chia igual
torneira
aberta
e vazia
sem água.
Parece
chaleira
roxa
de raiva
abandonada
que foi
no fogão...
A primavera
medrosa
treme o frio
da manhã.
Quer ser
formiga
esforçada
em trilhas
sinuosas
e fica
vermelha
de raiva
com a cigarra
que chia
de tão
preguiçosa
que é...
Ela nem sabe
que logo vai andar
estressada
com o atraso do verão
e aí todos vão vê-la
explosiva igual
torneira fechada
pingando!
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009
POR QUE FUJO
Não me pergunte por que fujo. Não suplique respostas. Faço-o, simplesmente. Tornou-se acontecimento oficial, que resguardo de qualquer autocrítica.
Afastar-se dos laços costumeiros e inquestionáveis, como tomar banhos frios por alguns dias. Fugir para dizer que não quero depender de amarras e de currais.
Não me pergunte Desde quando você age assim?
Só sei que sofro e me sinto bem. Nem adianta você dizer Você é doido, sabia?
Fugir é um estilo de vida. rejuvenesce alegria e tristeza.
Estou viciado em fugir. Vício que se apossou de mim. Tem seus ápices, delírios, e depois a melancolia baixa e cobre tudo.
Como passou a fazer parte de minha vida, não sei.
Devo estar exausto de tua voz. Das curvas de teu corpo. Perderam-se os labirintos, foi-se o mistério. Restou Deve-me obrigação e respeito!
Entendo as convenções sociais, mas fugir dá um prazer bucólico, que não quero compartilhar. É meu segredo. Minha caixa preta.Tua simplicidade cotidiana não preenche as lacunas da solidão.
Aí você diz Eu me esforço, sabia? Entendo, embora seja um engodo perseguir a paixão, deixada por teu vácuo, nas noites acesas de encontros embriagados, lá onde teu lamento estonteou-se na contramão.
Investiga-se a caixa preta e descobre-se que não me vês da maneira como te vejo.
Traduzo-te numa linguagem sensual. A língua e a cama, com símbolos infinitos, numa linha pontilhada de sinais extraviados pela asneira do dia-a-dia. Frases decoradas, gramática inútil, no fundo de tua boca.
Você me vê O homem da minha vida, O único que amei... Mas essas etiquetas usuais não me convencem. Não são alavancas suficientes para me fazer rastejar montanha acima.
Sabes que não te vejo assim. E é por que te vejo diferente que necessito fugir. Sei entortar as grades, pular o muro. Sou expert nos detalhes, que planejo no horário de visita, quando a truculenta insônia vem dar Oi.
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