quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

ELA



Arte - Pablo Picasso


Não retornava ao mercadinho, perto de casa, fazia dias. Nem sei por quais motivos. Corro em busca de sorvete para amenizar os excessos da noite passada.

Ela ajeita os iogurtes, pano embebido no álcool. Avental branco, busca entrosamento no novo lar. Sua beleza discreta me desperta, e quase desmaio de susto.

A tarde promete chuva. Agora, armou-se temporal. Vou demorar um pouco mais, até abaixar a adrenalina. Prefiro chegar em casa encharcado.

Um cliente da casa, com seu visual esforçado, fala animadamente com o gerente. Diz da última de seu tio, de Uruguaiana. Fazia sua caminhada matinal, no calçadão da cidade e, vupt, caiu de borco no chão. Enfartou. Sessenta anos. Só bebia uma cerveja de vez em quando.

Estou na fila do caixa e, querendo chamar a atenção, entro na conversa. “O negócio é beber cerveja todos os dias, que aí se vive mais!”.

O tiro saiu pela culatra. Fiel à seriedade do posto, ela nem levanta os olhos para mim.

Mas isso não derruba minha esperança.
Voltarei amanhã.
Hoje foi sorvete de morango.
Vou fazer revezamento.
Amanhã vai ser sabor chocolate.

Desisti de ir à lotérica jogar na Mega-sena. Minha loteria é no mercadinho. Vou ser fiel às minhas loucuras. Vou mudar o itinerário.
Minhas férias estão de bom tamanho, perto de casa.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

UM PREÇO A PAGAR



Arte - Paul Gauguin - 1888



Os porongos pendurados contrastavam com o telhado, chamuscado, da varanda. Meu avô mal disfarçava o mal-estar, enquanto aguardava as visitas.
Senhoras viúvas vinham em duplas, guiadas pelas sombrinhas no sol de verão. Quando chegavam, sombrinhas se fechavam, sorrisos floresciam. Vovô restava sério. Dizia para seu manto interior: Não sou oferecido!

Não era livre, nem quando sesteava. As cigarras compunham trilhas sonoras. Mas era desconfiado. Bastava ele reparar nos chalés, mantas, saias e bordados que, num gesto de desdém, vovô desmantelava a missão daquelas viúvas!

Hoje, as lembranças fazem parelha, no princípio urbano da tarde, com a serra do vizinho. As sangas que me banhavam agonizam em algum lugar. Aqui na cidade, nem as árvores pobres dos passeios aceitam dormir comigo sua sombra.

Há um preço a pagar, dizia vovó.

Pudera. Não decoramos o telefone de nossos amigos. De memória, há o risco de resvalarmos para o telefone da sala de viúvas solitárias.
Perdão, foi engano.

Um oceano nos separa, mas tornamos refém a pessoa do outro lado. O silêncio cortado pelo suspiro. Esperava ligação do filho amado. Na despedida, o desalmado apenas diz: Até breve. O silêncio faz ela tombar na cadeira, para logo depois recobrar o fôlego, lavar a louça e ajeitar a roupa no varal. A viúva implora: Quando vais ligar de novo? Do outro lado da linha, um Em breve!

Há um preço a pagar, dizia vovó.

O riso injustificado, o sol atrás das nuvens, temporal de promessas que dissipou e deu lugar à brisa gelada. Choveu em algum lugar.

Vovô ceva o mate. Papai observa a junta de bois, caem os bernes e carrapatos, sobre o preço da arroba. Ali perto há uma cascata, um poço fundo para aprender a nadar.

Um telefone silencioso numa sala silenciosa. Perdão, foi engano!

A viúva se oferece ao filho. Um oceano açoita o tempo do outro lado da linha. Ela é igual à sanga, que sangra em algum lugar.

Dizia vovó: Há um preço a pagar.
Saudade.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

FOGUETEIROS


Arte - Bavcar - fotógrafo





É preciso crer em nossa libertação de relâmpagos viciados, que alugaram o território dos neurônios.

Dizem que os flashes são indispensáveis para a auto-estima sobreviver. Assim, nos aventuramos, olhando para o céu. Assumimos o manche de nosso teco-teco, mesmo sem sair do chão.

Para meus jovens pais, os foguetórios eram especiais.
Acho que eles sabiam que, pior que carregar costumes na mochila, de um ano para outro, é o apego às nóias que virão.

Nos tempos de carência concreta, reservávamos nossos fogos para poucas festas. Santo padroeiro, casamentos, quando nosso time era campeão.
Agora, as carências são outras e complexas.

Diz a turma da auto-ajuda: vamos lavar a roupa suja com doses extras de entusiasmo. Repensar amores e aventuras, trocar os quadros da parede. O apego faz mal pra alma irrequieta.




Ser fogueteiro não é pra qualquer um.

Reinventemos o sentido da palavra “espetáculo”.

Vamos deslumbrar nossos olhos com a lua cheia, as estrelas e o pôr do sol.

Perguntemos, sem medo de nos chamuscarmos: cada foguete espocado pipoca no céu pranchaços de alegria, orgulho por tudo que realizamos, e saltos triplos na concretização da paz mundial, tolerância e solidariedade?

Fogueteiro. Assim ele era chamado. Não tinha fábrica, não foi pra frente de batalha. Sua missão era conduzir, com as mãos calejadas, relâmpagos estrondosos no céu.

Agora, fogueteiros são jovens, adultos, juvenis.

Todos estão perfilados no campo de batalha.

O estoque está pronto. Não pode restar vencido. Que venham momentos especiais em 2009!

domingo, 4 de janeiro de 2009

CANTO DE AMOR


Arte - De Chirico - Canto de amor.
Apareces altruísta
no limiar do despertar
de minhas sestas.

Assim é bem melhor!

Antes a via às costas
as pernas leves cruzadas
o silêncio salpicado
atrás do divã.

Uma vez por semana
um desejo contraditório
me queria me expulsava
do teu consultório!

Assim é bem melhor!

Foi-se o porre e dias risonhos
veio a sombra expiar
os quilos a mais
e teu passeio em meus sonhos.
És o sonho que tolero
sem medo do desespero
e ter que lembrar
o último pesadelo.

Assim é bem melhor!

Embora todo esse escárnio
sento e relaxo
pés erguidos e descalços
conto os dias e vacilo
sobre o tempo que falta
pra voltares.
É limiar do ano
e entrego os meus planos
a promessas e dietas
alegres e egoistas
que digam aos amigos
segunda quarta e domingo
minhas verdades veladas
exprimidas sufocadas
e muitos palavrões
que ainda vou pronunciar!

Assim é bem melhor!!

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

A ARTE DE CONSERTAR BOLAS - E OUTROS BRINQUEDOS



Nas gavetas de um velho armário havia linha, agulha, cola e remendos. As bolas, de gomos com diversos formatos, não eram abandonadas pelos cantos, quando furavam. Ao contrário, eram tratadas com muito mais carinho. Tinham sete vidas... Mesmo que perdessem a cor e não as enxergássemos direito, quando o jogo estava empatado e a noite se aproximava.

Ao furarem, eram consertadas. Uma, duas, três vezes... Perdiam a cor, tornavam-se achatadas, mas permaneciam importantes. Cortar o barbante, localizar o furo, era arte para alguns. Quase sempre para o jogador mais “perna de pau”. Daí ele se destacar em meio à turma – como se fosse o dono da bola, sempre titular, fossem quais fossem as circunstâncias.

O momento do treino ou do jogo começar, no campo improvisado em meio à pastagem dos animais, era anunciado pelo ruído do quique da bola (pronunciávamos “pique”). Bastava alguns chutões para o alto e deixar a bola saltitar na grama, que a turma logo ia juntando.

A divisão dos times, a escolha dos jogadores, exigia uma assembléia demorada. Ninguém admitia perder. Porém, havia o consenso de se ajustar as peças no jogo, misturando os “feridas” com os “Pelés”.

Celito. Este era o seu nome. Intrigava-me sua amizade com as bolas: levava pouco jeito, maltratava-as quando jogava, porém era seu guardião na hora de consertá-las.

Nosso destino, valentes craques de futebol, estava nas suas mãos.

Naquela época falava-se muito de vocação e talento para escolher determinada profissão. Mas as escolhas não eram precoces, nem havia intensa pressão, desde a infância, para se decidir o que fazer quando adulto. A profissão de jogador de futebol profissional não estava em destaque. Todos jogavam e, na sua imaginação, eram Pelés, Zicos, Rivelinos...

O tempo tratava de remediar os delírios imaginários de craques de futebol que éramos. O que aconteceu pelo caminho, o vemos agora: a maioria casou, constituiu família, e toca os negócios, como seus pais...

O que Celito faz hoje em dia? Muitas coisas que ele fazia, quando éramos crianças, ele ainda faz: trata com afeto os objetos que convivem com ele. Aquilo que é do seu convívio cotidiano, ele abraça com cuidado.

Celito, aposentado, não senta na varanda “com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Ele conserta brinquedos estragados que foram abandonados pelas crianças.

Esses brinquedos são distribuídos, no final do ano, entre as crianças carentes dos bairros e vilas.

Lembro do verso da música do Raul Seixas que diz: “Eu devia estar contente porque eu tenho...” Não estou alegre nem triste. Estou me perguntando sobre o valor das coisas e das nossas escolhas e atos. Celito volta à memória e me faz perceber que, para além da vocação e especialização que buscamos em nossas vidas, o que mais vale é o amor e o entusiasmo que dedicamos às causas que abraçamos.

O PATIFE tá enrolando de novo

Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...