sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

No fundo, somos uns solitários


A esposa reclama que a máquina de lavar roupas estragou. A outra diz que está com saudade, que foi ao salão, mudou o cabelo e está louca para encontrá-lo.
Trocam-se os papéis.
Separa-se, encara pensão alimentícia e torna a garota linda e cheirosa sua esposa oficial. Reordenam-se as regras e logo a ex-outra é quem vai reclamar do vazamento da torneira da pia e da caixa de descarga do banheiro.
Enquanto isso a ex-oficial tricota artimanhas para estar sempre por perto e reivindicar o que lhe é de direito: fazer o impossível para tornar a vida dele um inferno.
Ser e não ser. Um dia somos namorados, noutro dia não. Um dia maridos ou esposas, noutro dia não. Amantes e ex-amantes. O campeonato da vida muda suas posições em alta velocidade. E nem percebemos que somos uns tontos!
Não descrevo fatos reais, munição perfeita para sites e revistas de fofocas. Farejo assunto qualquer para aguçar a curiosidade de meus onze leitores (pressinto que logo, logo, chegarei a quinze).
Fios, teias, boa parte imperceptíveis, nos conectam à realidade. Mas como esta anda vulnerável à neblina e ao lusco-fusco do “ouvi dizer”!
Será que um marido perfeito pode ser amante perfeito? Será que a amante perfeita pode ser esposa perfeita? Quem consegue andar tranquilo nas trilhas da monogamia? E nas trilhas da poligamia?
Inventamos as regras não sem renúncia. Culpamo-nos quando desobedecemos as mesmas. Também inventamos a tragédia e a comédia? Somos tontos, ridículos e sérios ao mesmo tempo. E temos dificuldade para perceber o quanto estamos aprisionados.
Leio um poema de Neruda e me pergunto como ele vê essas danças de troca de papéis. Somos razão, somos pulsão, somos vontade de poder, de sexo, de carinho... e de solidão.
Diz um trecho do poema “Cavaleiro solitário”, traduzido por Paulo Mendes Campos:

 “Os entardeceres do sedutor e as noites dos esposos
unem-se como dois lençóis me sepultando,
e as horas depois do almoço em que os jovens estudantes
e as jovens estudantes, e os sacerdotes se masturbam,
e os animais fornicam diretamente,
e as abelhas cheiram a sangue, e as moscas zumbem coléricas,
e os primos brincam estranhamente com as suas primas,
e os médicos olham com fúria para o marido da jovem paciente,
e as horas da manhã em que o professor, como por descuido,
cumpre o seu dever conjugal e toma o café,
e ainda mais, os adúlteros que se amam com verdadeiro amor
sobre leitos altos e longos como embarcações;
seguramente, eternamente me rodeia
este grande bosque respiratório e enredado
com grandes flores como bocas e dentaduras
e negras raízes em forma de unhas e sapatos.”


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Poema de Emily Dickinson


Neste poema Dickinson fala a respeito de um enterro que ela provavelmente presencia por morar perto de um cemitério. Este enterro é associado por ela ao seu próprio, como revelado na terceira estrofe. A tradução é de paulo Mendes Campos.

Não era a morte, pois eu estava de pé
e os mortos estão todos deitados; 
não era a noite, pois todos os sinos 
punham a língua de fora ao meio-dia. 

Não era o orvalho, pois na carne 
sentia sirocos a rastejar... 
Nem o fogo, pois os meus pés marmóreos 
podiam guardar para si um frio santuário. 

Era no entanto como se fossem. 
Formas que vi 
arrumadas para o enterro 
lembravam as minhas, 

como se a minha vida, recortada 
e emoldurada, 
ficasse irrespirável sem uma chave; 
e como se fosse meia-noite, um pouco,

quando tudo que bate de leve pára, 
e o espaço olha em torno, 
e a geada horrenda, manhãs primeiras de outono, 
bloqueia o chão palpitante. 

Principalmente como o caos – frio, incessante – 
sem saída ou ponto de apoio, 
sem qualquer notícia da terra 
para justificar o desespero.

ORIGINAL

1. It was not death, for I stood up, 
2. And all the dead lie down; 
3. It was not night, for all the bells 
4. Put out their tongues, for noon. 
5. It was not frost, for on my flesh 
6. I felt siroccos crawl, 
7. Nor fire, for just my marble feet 
8. Could keep a chancel cool. 
9. And yet it tasted like them all; 
10. The figures I have seen 
11. Set orderly, for burial, 
12. Reminded me of mine, 
13. As if my life were shaven 
14. And fitted to a frame, 
15. And could not breathe without a key; 
16. And I was like midnight, some, 
17. When everything that ticked has stopped, 
18. And space stares, all around, 
19. Or grisly frosts, first autumn morns, 
20. Repeal the beating ground. 
21. But most like chaos,--stopless, cool, 
22. Without a chance or spar,-- 
23. Or even a report of land 
24. To justify despair.

(Poema extraído da monografia de Aline Dimingues de Paiva. Cfe. site http://www.ufjf.br/bachareladotradingles/files/2011/02/Aline-Domingues.pdf)

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Quando fui acertar a conta no bar, pendurada nos últimos dias, o bolicheiro não encontrou, no caderno, o meu nome. Ao repassar a longa l...