terça-feira, 15 de junho de 2010

QUERIA QUE EXISTISSE... - Tatiana Belinky



Esta história, creio, traz preciosos argumentos que ajudarão a justificar a necessidade dos livros e da leitura na vida das crianças. "Criança necessita tanto do 'sobrenatural' como do 'mágico' e do 'fantástico'". Dizem o mesmo os psicanalistas Diana Corso e Mário Corso, no livro Fadas no divã


O que vou contar aconteceu quando o protagonista deste “causo” estava em plena época dos “por quês” e “pra quês”: quatro anos de idade. Uma idade em que as cabecinhas infantis funcionam à toda, observando e indagando e tentando decifrar o complicado e misterioso mundo que as rodeia. Um mundo complicado e misterioso, mas também fascinante, e às vezes mesmo assustador. Mas vamos ao “causo em causa”.

Andrezinho nasceu de um casamento “misto”, de um casal oriundo de religiões diferentes, e seus pais, um tanto intelectualizados e agnósticos, não se preocuparam em ensinar-lhe qualquer coisa sobre religião. Achavam que, à medida que os filhos fossem crescendo e amadurecendo, acabariam por encontrar e escolher o seu próprio caminho. E que, por enquanto, bastava educá-los numa linha ética e humanista, de amor, solidariedade, tolerância e respeito – por si mesmo e pelo próximo.

Foi na hora do almoço. Sentado à mesa, com os pais e o irmão maior, Andrezinho não participava da animada conversa familiar. Como sempre, quando ficava pensativo, ele enrolava no dedinho indicador a mecha de cabelo macio que lhe caía da testa, os grandes olhos negros, tão parecidos com os do pai, perdidos na distância. Até que por fim, já na sobremesa, o menino soltou um suspiro tão profundo, que todos se voltaram para ele.

- O que foi, André? – Perguntou a mãe, que nunca o chamava de Andrezinho, porque ele não gostava de diminutivos, a ponto de chamar uma escrivaninha de escrivana e uma galinha de gala...

A resposta veio sem titubear:

- Ah... eu gostaria que existisse Deus!

Surpresa geral: ninguém – pelo menos ninguém da família – nunca lhe falou nesse assunto, nunca disse que Deus existia ou deixava de existir. Quando muito, ele deve ter ouvido em casa – porque ainda nem ia à escola – exclamações do tipo “Ai, meu Deus”, “Se Deus quiser”, “Graças a Deus”, “Deus me livre”, essas coisas. E agora, aquele sentido suspiro!

- Mas... por que você diz isso? – pergunta a mãe, carinhosamente, após brevíssima hesitação.

- Porque, se existe Deus, eu ia pedir-lhe uma coisa.

Os pais se entreolharam: o que será que falta a este menino, “onde foi que erramos”? E a mamãe, jovem e inexperiente, pra não dizer bobinha, pergunta:

- Mas o que é que você iria pedir a Deus, que o papai e a mamãe não te podem dar?

E imediatamente, pela expressão do rosto do filhote, mesmo antes de ouvir a resposta, percebe que a sua pergunta foi no mínimo ingênua, ou mesmo tola. Porque a resposta veio pronta, em tom entre admirado e reprovador:

- Ah, mãe! Se existisse Deus, eu ia pedir a Ele para existir Papai Noel!

Ninguém riu. E não era caso de rir, mesmo.O Andrezinho acabava de nos dar uma grande lição, uma “aula magistral”, numa só curta frase. E a lição era: criança necessita do “sobrenatural” como do “mágico” e do “fantástico”.

“Tadinho” do André – quatro aninhos e já tão sem “ilusões”. As lindas ilusões e fantasias dos contos de fadas, das poesias, de todas essas coisas bonitas e muito, muito importantes para a criança. “A fantasia é o hormônio da alma”, disse o famoso escritor e pensador Ortega y Gasset, “sem a qual a alma se resseca e morre...”.

Mas não se preocupem: o Andrezinho superou esse ceticismo, e foi, ele mesmo, um formoso sonhador e poeta na vida.

Do livro Bidínsula e outros retalhos. Editora Atual, coleção Conte outra vez. 1990.

MERA DIVERSÃO

Em quais de nossas atividades diárias nos divertimos? Na vida profissional, por exemplo, há alguma possibilidade disso acontecer?
Misturar pitadas de diversão na competição diária, como o leite no café (mesmo que seja em pó), é uma extravagância, ou quase uma necessidade?
Chamou-me a atenção o comentário do narrador da corrida de Fórmula Um, no último domingo: o piloto divertiu-se um bocado ao fazer manobras em que estavam implicados dois outros pilotos, mais velozes do que ele, e que buscavam ultrapassá-lo - já que brigavam pelas primeiras posições.
Nessas corridas, até os centésimos de segundo são importantes. É o tempo domado pela tecnologia. Esta tem sua margem de erro cada vez menor. As manobras, as decisões, neste curto espaço de tempo, são mecânicas (mecanizadas) ao máximo. Quem bom que, apesar disso tudo, o piloto divertiu-se.
Parece-me que a diversão é vista por nós como simples, sem importância, hoje em dia. Talvez por ter sido diluída pelos atropelamentos da vida que levamos.
Considero que abrir clarões para a diversão, em meio à selva da mecanicidade diária, é como vislumbrar um oásis no deserto.
A diversão a que me refiro pode ser chamada de lúdica e/ou estética.
Não é passatempo ou entretenimento, como boa parte do que assistimos na TV, ou vemos na internet.
Mas acima de tudo, essas brechas lúdicas só têm valor se causarem algum efeito em cada um de nós. Se nos despertarem para algo que ainda não percebíamos. Efeitos que funcionam à maneira de sacudidelas, e nos acordam para outras dimensões do existir, opostas à mecanicidade e superficialidade de nosso pensar e agir, seja individual ou junto com os outros.

O crepúsculo de Van Gogh

As nuvens eram criaturas selvagens e ‒ ao mesmo tempo ‒ gatos, cães, jacarés e lagartos, perfilados no horizonte próximo. piscaram...